segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

PRISÃO DOMICILIAR PARA DETENTAS GRÁVIDAS E MÃES DE MENORES DE 12 ANOS



A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar na próxima terça-feira (20) um habeas corpus coletivo que busca garantir prisão domiciliar a todas as mulheres grávidas que cumprem prisão preventiva e às que são mães de crianças de até 12 anos. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 622 mulheres presas em todo o país estão grávidas ou amamentando.
O debate surgiu depois que a Lei 13.257/2016, Marco Legal da Primeira Infância, entrou em vigor alterando o Código de Processo Penal que passou a prever o seguinte: Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: (...) IV - gestante; V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos.
O debate está aberto é já vimos decisões divergentes entre si. Ao mesmo tempo que se concedeu no Supremo Tribunal Federal o direito à prisão domiciliar para a ex-primeira dama do Rio de Janeiro, Adriana Ancelmo, mãe de um filho menor de 12 anos, no Superior Tribunal de Justiça se negou o mesmo direito a mãe de recém-nascido presa com apenas 8,5g de maconha. Em caso recente, vimos o juiz da audiência de custódia negar o direito à prisão domiciliar a uma mãe que havia entrado em trabalho de parto na mesma data, pouco antes da audiência, acabando a detenta presa junto com o filho de apenas dois dias em uma cela de 2 metros, na carceragem do 8º Distrito Policial, no Brás, em São Paulo.
Nosso posicionamento é que a prisão domiciliar não é um direito concedido exclusivamente à mãe presa, mas essencialmente é um direito concedido ao nascituro e às crianças menores de 12 anos, o qual deve prevalecer em razão do princípio da proteção integral à criança, previsto no art. 227 do Constituição Federal.
No Judiciário Paraense, já podemos ver a decisão do Juiz da 7ª. Vara Criminal, Dr. Flavio Sánchez Leão, que concedeu o direito à prisão domiciliar a uma mãe de dois filhos menores de doze anos, embora se posicionasse contra este direito o Ministério Público.
Em razão de ser didática para o debate, reproduzimos a decisão do Juiz paraense:

“Decisão
O Ministério Público manifesta-se de forma contrária à substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar de C.M.M., embora esteja comprovado que esta possui filhos menores de 12 anos, com base nos seguintes argumentos, em síntese:
a) A conversão da prisão preventiva em prisão domiciliar prevista no art. 318 do CPP não é automática e nem obrigatória, sendo necessário analisar as circunstancias de cada caso concreto para saber se a prisão domiciliar será suficiente;
b) Para a conversão é necessário que a medida substitutiva não coloque em risco à garantia da ordem pública, à conveniência da instrução criminal ou implique risco à aplicação da lei penal.
O argumento do Ministério Público, com a devida vênia, padece de validade.
Caso não estivessem presentes os fundamentos previstos no art. 312 do CPP para a decretação da prisão preventiva (quais sejam: risco à garantia da ordem pública, à conveniência da instrução criminal ou risco à aplicação da lei penal) a prisão preventiva deveria simplesmente ser revogada e não convertida em prisão domiciliar.
Condicionar a concessão da prisão domiciliar à ausência de tais requisitos equivale a impedir a conversão em todos os casos, pois se a pessoa teve a prisão preventiva decretada é evidente que foi em razão da presença de um deste fundamentos do art. 312 do CPP que configuram o periculum in mora autorizadores da prisão preventiva.
Tal raciocínio, por via de sofisma, nos leva, no final das contas, simplesmente, a ignorar a Lei nº 13.257, de 2016 que alterou o art. 318 do CPP, tornando, na prática, inaplicável a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar.
No caso concreto destes autos, é evidente que a ré se encontra em regime de prisão preventiva por ter-se identificado risco à ordem pública, tendo em vista suas possíveis atividades no comércio de drogas e abastecimento de outras regiões da capital paraense. Logo, pela tese do Ministério Público, jamais poderia se conceder à ré o direito à conversão da preventiva em prisão domiciliar.
Entretanto, estar presente o fundamento desta prisão preventiva, não faz com que a ré deixe de ser mãe de duas crianças menores de 12 anos, crianças estas para quem se destina a Lei 13.257, de 2016, conhecida como marco legal da primeira infância, ou seja, crianças que foram o foco do legislador em detrimento, até certo ponto, dos fundamentos da prisão preventiva.
O Marco Legal da Primeira Infância (Lei 13.257/2016), que entrou em vigor em março de 2016, alterou a redação do artigo 318 do CPP, a fim de tornar ainda mais amplas as hipóteses de concessão de prisão domiciliar:
Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). I - maior de 80 (oitenta) anos; (Incluído pela Lei n. 12.403, de 2011). II - extremamente debilitado por motivo de doença grave; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011). III - imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011). IV - gestante; (Redação dada pela Lei nº 13.257, de 2016) V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos ; (Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016) VI - homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos. (Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016) Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo. (grifei)
Reconheço que o diploma acima citado deve ser aplicado de forma restrita e diligente, verificando-se as peculiaridades de cada caso.
Não obstante as circunstâncias em que foi praticado o delito, a concessão da prisão domiciliar encontra amparo legal na proteção à maternidade e à infância, como também na dignidade da pessoa humana, porquanto prioriza-se o bem-estar da criança.
Em seu livro Prisão e Liberdade, de acordo com a Lei 12.403/2011 (Editora Revista dos Tribunais, 3. ed., p. 114), o desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Guilherme de Souza Nucci, relata: “A mens legis diz com a necessidade de resguardar, em tal situação, não o agente criminoso, mas sim a pessoa que se encontra em situação de vulnerabilidade legitimadora de maiores cuidados, quais as crianças e deficientes, de modo coerente, inclusive, com a maior proteção a eles deferida pelo ordenamento jurídico nacional, constitucional e infraconstitucional, e internacional. Portanto, o raciocínio que se deve fazer, neste caso, deve partir da consideração do que é melhor para o vulnerável o filho recém-nascido e não do que é mais aprazível para a paciente.”
Por diversas vezes, a Segunda Turma do STF, por exemplo, tem concedido habeas corpus para substituir a prisão preventiva de pacientes gestantes e lactantes por prisão domiciliar:
Habeas corpus. 2. Tráfico de drogas. Prisão preventiva. 3. Alegação de ausência dos requisitos autorizadores da custódia cautelar (art. 312 do CPP). Rejeição. 4. Paciente com filhos menores. Pleito de concessão da prisão domiciliar. Possibilidade. 5. Garantia do princípio da proteção à maternidade e à infância e do melhor interesse do menor. 6. Preenchimento dos requisitos do art. 318, inciso V, do CPP. 7. Decisão monocrática do STJ. Não interposição de agravo regimental. Manifesto constrangimento ilegal. Superação. 8. Ordem concedida de ofício, em parte, para determinar que a paciente seja colocada em prisão domiciliar. (HC 142279, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 20/06/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe- 182 DIVULG 17-08-2017 PUBLIC 18-08-2017)
Habeas corpus. 2. Tráfico de drogas. Prisão preventiva. 3. Paciente lactante. Revogação da prisão cautelar e, subsidiariamente, concessão de prisão domiciliar. Possibilidade. 4. Garantia do princípio da proteção à maternidade e à infância e do melhor interesse do menor. 5. Súmula 691. Manifesto constrangimento ilegal. Superação. 6. Preenchimento dos requisitos do art. 318 do CPP. 7. Ordem concedida, de ofício, confirmando a liminar previamente deferida, para determinar a substituição da prisão preventiva por domiciliar. (HC 134069, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 21/06/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-159 DIVULG 29-07-2016 PUBLIC 01-08-2016)
Destaco, ainda, que, nos termos das Regras de Bangkok, de dezembro de 2010, a adoção de medidas não privativas de liberdade deve ter preferência, no caso de grávidas e mulheres com filhos dependentes.
Transcrevo o dispositivo das Regras de Bangkok:
2. Mulheres grávidas e com filhos dependentes
Regra 64
Penas não privativas de liberdade serão preferíveis às mulheres grávidas e com filhos dependentes, quando for possível e apropriado, sendo a pena de prisão apenas considerada quando o crime for grave ou violento ou a mulher representar ameaça contínua, sempre velando pelo melhor interesse do filho ou filhos e assegurando as diligências adequadas para seu cuidado.
A necessidade de observância das Regras de Bangkok, acrescente-se, foi apontada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, no julgamento do HC 126.107/SP, e tem sido constantemente invocada pelo Ministro Celso de Mello em seus pronunciamentos orais na Segunda Turma.
Por decisão colegiada, a Primeira Turma do STF, por exemplo, concedeu a ordem em favor de mãe de duas filhas gêmeas de onze anos de idade, que fora presa juntamente com o pai das crianças, por tráfico de drogas – HC 136.408, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 5.12.2017.
Em suma, a questão da prisão de mulheres grávidas ou com filhos sob seus cuidados é absolutamente preocupante, devendo ser observadas, preferencialmente, alternativas institucionais à prisão, que, por um lado, sejam suficientes para acautelar o processo, mas que não representem punição excessiva à mulher ou às crianças.
Ante o exposto, CONVERTO A PRISÃO PREVENTIVA EM PRISÃO DOMICILIAR, impondo a cautelar de necessidade de monitoramento eletrônico a fim de que a locomoção da ré fique restrita ao ambiente de sua residência.
Expeça-se Alvará de Soltura com a observância da conversão em prisão domiciliar com monitoramento eletrônico.”

Exemplar para o Judiciário paraense a decisão do juiz da 7a. Vara Criminal. Esperamos que o Supremo Tribunal Federal venha referendar a Lei 13.257/2016, Marco Legal da Primeira Infância, e conceda às grávidas e mães brasileiras o direito à prisão domiciliar, não deixando margens para dúvidas.

* Patrícia Leão é advogada atuante na Comarca de Belém do Pará – Tel. (91)981741220 – e-mail: paticialeao2010@yahoo.com.br

sábado, 17 de fevereiro de 2018

O RECONHECIMENTO PESSOAL DO ACUSADO (SEM OBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCEDIMENTO LEGAL) NÃO PODE SER CONSIDERADO PROVA ABSOLUTA NO PROCESSO PENAL



Em processo criminal, para que haja fundamento da condenação de uma pessoa é necessária certeza razoável da culpa do réu por parte do juiz.
Não havendo tal certeza, havendo dúvida por parte do magistrado, o resultado deve ser a absolvição, pois em Direito Penal prevalece a máxima de que “in dubio pro reo”.
In dubio pro reo é uma expressão latina que significa literalmente na dúvida, a favor do réu. Ela expressa o princípio jurídico da presunção da inocência, que diz que em casos de dúvidas (por exemplo, insuficiência de provas) será favorecido o réu.
Em inúmeros casos, no dia a dia forense, a prova fundamental em que se apoiam juízes para condenação do acusado tem sido o reconhecimento pessoal do réu pela vítima ou por testemunhas.
A seguir, iremos expor trecho de razões de apelação por nós apresentadas no Tribunal de Justiça do Estado do Pará, na qual houve condenação com base em suposto reconhecimento pessoal do acusado, a fim de exemplificar como pode ser frágil este meio de prova se não houver bastante ponderação do magistrado ao apreciá-lo:

II – a) DA INSUFICIÊNCIA DE PROVAS DA AUTORIA.
Vejamos um trecho da sentença onde o magistrado fundamentou a autoria:
“Atente-se que é ela (a vítima) incisiva no reconhecimento de F. Portanto, as declarações da supramencionada vítima, nesta Justiça e na polícia, são coerentes, hábeis a um juízo de convicção da participação ativa de F. na ação ilícita em que foi vítima juntamente com seu namorado...”
Entretanto, com a devida vênia, o que é considerado reconhecimento incisivo pelo Magistrado, na verdade, não possui a minha consistência para que se profira edito condenatório.
A circunstância a que foi atribuída força probatória de reconhecimento resumiu-se a uma olhada de relance lançada pela vítima nos corredores do fórum criminal de Belém.
No registro em vídeo da audiência, aos 12:51 min., a vítima, B. S. L., afirma que viu o réu no corredor do fórum, mas logo virou a cara. Ou seja, como dito, olhou de relance e mesmo assim diz ter reconhecido um dos assaltantes. Não sabemos sequer se foi o réu, realmente, que a vítima avistou nos corredores do fórum criminal.
Em razão desta circunstância, o Magistrado que presidia a audiência e, depois, proferiu a sentença, dispensou a formalidade de realização de um reconhecimento de pessoa durante o ato de instrução criminal.
Aos 12:25 min., do depoimento de B. S. L., o Meritíssimo Juiz decide que não iria fazer um auto de reconhecimento pois a vítima tinha visto o réu nos corredores do fórum e, portanto, estava prejudicado o auto de reconhecimento.
A primeira pergunta a ser feita é a seguinte: que culpa pode ser atribuída ao réu se no fórum criminal de Belém não se garante a separação em salas distintas das vítimas e dos acusados? O réu é culpado se no fórum criminal de Belém não se tem estrutura para cumprir o art. 201, § 4º, do CPP, o qual dispõe: “Antes do início da audiência e durante a sua realização, será reservado espaço separado para o ofendido”? O réu foi intimado para a audiência e compareceu, permanecendo nos corredores do fórum. Se não reservaram espaço separado para a vítima, não poderia ter sido prejudicado, em razão disso, pela supressão do ato de reconhecimento de acordo com as formalidades do art. 226 do CPP, no qual deveria ter sido, no mínimo, colocado ao lado de outras pessoas que com ele tivessem qualquer semelhança.
O réu em momento algum adentrou na sala de audiências, não ficou frente a frente com as vítimas e com as testemunhas durante o ato processual, a vítima revela que não havia procedido reconhecimento nenhum na fase do inquérito policial, não se sabe se a pessoa que ela avistou nos corredores do fórum era, realmente, o réu e foi suprimido o seu direito a um ato de reconhecimento com as formalidades legais.
O ato poderia ter sido procedido, pois, ao responder as perguntas do Promotor de Justiça, a vítima afirmou, aos 6:27 min., do vídeo de seu depoimento, que tinha condições de reconhecer o réu pelo vidro de reconhecimento da sala de audiências sem que o réu a visse, porém, mesmo assim, não foi procedido o ato de reconhecimento.
Para se ter uma ideia de quão frágil é a circunstância em que se apoiou o Magistrado para condenar o réu, vejamos o depoimento da vítima. Aos 6:56 min., do vídeo de seu depoimento, disse que, pelo pouco que o viu no ambiente do fórum criminal, o reconheceu, dizendo, em seguida que era magro, que não era muito alto e afirmou que o réu era: “NEGRO, PARDO, MORENO OU MORENO ESCURO”, para finalmente dizer que o réu era pardo. Basta ouvir o depoimento aos 6:56 min.
Não bastasse a indecisão da vítima sobre as características raciais do réu, a Defesa vem a afirmar a Vossas Excelências que o réu é mameluco, um indivíduo que possui ascendência indígena e branca, um típico caboclo da Amazônia. Basta ver a identidade de F. fl. 39, a qual revela uma pessoa com traços indígenas, com os olhos puxados característicos dos caboclos amazônidas, nada tendo a ver com as características dos descendentes da raça negra que a vítima descreveu.
Não desconhecemos lições recentes do Supremo Tribunal Federal no seguinte sentido: “O reconhecimento firme e seguro feito pela vítima, em juízo, dispensa as formalidades do artigo 226 do CPP” (STF - ARE: 791170 DF , Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 28/04/2014, Data de Publicação: DJe-082 DIVULG 30/04/2014 PUBLIC 02/05/2014). Porém, observemos que o Senhor Ministro está se referindo ao reconhecimento feito EM JUÍZO, sob o crivo do contraditório, na presença do defensor do réu, que ocorre quando o réu está presente na sala de audiências, ou no mínimo quando ele é avistado através do vidro especial de reconhecimento da sala de audiências, ainda que não se coloquem pessoas semelhantes ao seu lado. Nada disso se confunde com a vítima ter dito que viu o réu de relance nos corredores do fórum criminal e logo virou a cara. Como já dito, nem se sabe se foi mesmo o réu que a vítima avistou nos corredores do fórum criminal. Não é possível que se vá admitir que tenha sido este incidente um ato processual. Admitir isto fere de morte o princípio do contraditório e da ampla defesa.
Vejamos a doutrina de Gustavo Henrique Barbosa Campos, in “O Contraditório e a Ampla Defesa no Processo Penal”, disponível em < http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=12318>, acesso em 13/04/2015:   
“A exigência de contraditório e ampla defesa na formação e produção das provas pode assim ser desdobrada: proibição de fatos que não tenham sido previamente introduzidos pelo juiz no processo e submetidos a debate pelas partes; proibição de utilizar provas formadas fora do processo ou de qualquer modo colhidas na ausência  das partes; a obrigação do juiz, quando determinar a produção de provas ex officio, de submetê-las ao contraditório das partes, as quais devem participar de sua produção e poder oferecer a contraprova.
Ainda, quanto à prova, diz Grinover: “tanto será viciada a prova que for colhida sem a presença do juiz, como o será a prova colhida pelo juiz, sem a presença das partes; a concomitante presença de ambos- juiz e partes- na produção das provas é essencial à sua validade.” [GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 10. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pag.145,146]”
Evidente que o suposto encontro da vítima com o réu nos corredores do fórum, caso tenha havido, terá sido ocorrência acontecida sem a presença do juiz e do defensor do réu, o que vicia a ocorrência e impede que seja usada como prova apta para condenar um acusado.
Entendimento em sentido contrário fere de morte o art. 5º, LX, da Constituição Federal, in verbis: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. De forma que fica, desde já, prequestionada a violação do referido dispositivo constitucional para os fins de Recurso Extraordinário se for necessário, requerendo que o tribunal expressamente se manifeste sobre a violação.
Da mesma forma é determinado no Código de Processo Penal: “Art. 155.  O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”. Mais uma vez se vê que prova somente é aquela produzida em contraditório judicial e a ocorrência em que se fundamentou o magistrado para condenar o réu (o suposto encontro da vítima com o réu nos corredores do fórum criminal) não pode ser assim considerada. De forma que, se mantida a condenação com base nesse fundamento, entendemos violado o art. 155, caput, do CPP, ficando desde já prequestionada a violação da norma federal para fins de Recurso Especial se for necessário, requerendo que o tribunal expressamente se manifeste sobre a violação.
Deve ser aduzido, ainda, nesse tema do reconhecimento, que a vítima, E. B. Q., não fez também nenhum reconhecimento durante a audiência de instrução e julgamento, não se referiu a ter reconhecido o réu nos corredores do fórum, bem como os policiais que serviram como testemunhas não entraram em contato com o réu durante o ato de instrução processual. Portanto, reconhecimento pessoal do réu não houve durante a audiência de instrução deste processo criminal.”

Verificamos, portanto, que não só o juiz deve agir com ponderação ao apreciar a prova resultante de um reconhecimento pessoal, como deve também seguir os ritos processuais previstos em lei a fim de assegurar o direito ao devido processo legal e ao contraditório ao acusado. Jamais se pode admitir que um reconhecimento procedido fora da sala de audiências, fora do processo e de um ato processual, possa servir como prova absoluta a fundamentar uma condenação.  
Aguardamos o julgamento desta apelação com a consequente absolvição do acusado.

* Patrícia Leão é advogada atuante na Comarca de Belém do Pará – Tel. (91)981741220 – e-mail: paticialeao2010@yahoo.com.br


quinta-feira, 23 de novembro de 2017

UNIÃO HOMOAFETIVA GERA DIREITO À PENSÃO POR MORTE DE SEGURADO DA PREVIDÊNCIA



Trago ao conhecimento dos estudiosos do Direito ação em que atuamos, na qual o IGEPREV - Instituto de Gestão Previdenciária do Estado do Pará recusava-se a pagar a pensão por morte ao nosso cliente que viveu em união estável numa relação homoafetiva durante anos com o falecido segurado, professor universitário.
Fomos obrigados a acionar judicialmente a Previdência Estadual.
Segue um trecho da nossa petição inicial, que se fundamentou na ADI 4277 do Supremo Tribunal Federal, onde a Corte Suprema reconheceu a união homoafetiva como família:

– OS DIREITOS DA RELAÇÃO HOMOAFETIVA
A Constituição Brasileira, de 1988, com sua supremacia, traz, em seu preâmbulo, quais são os objetivos de um Estado Democrático e a intenção do legislador em garantir os direitos sociais e individuais a todos os cidadãos, livres de preconceitos.
Os direitos sociais inerentes a cada cidadão não podem ser negados tendo como fator de negação a identidade ou opção sexual do sujeito; uma vez que, obedecendo os critérios determinados na legislação vigente, todos são iguais perante a lei, ainda que não haja uma que trate especificamente dessa matéria.
A união estável já era considerada como entidade familiar, contudo, reconhecia, apenas, a união entre homem e mulher. Esse entendimento de união já deveria ser interpretado a luz da Constituição Federal, uma constituição garantista, democrática e de direito, sustentada por um de seus pilares mais importantes: a dignidade da pessoa humana. A ADI 4277 veio alargar a interpretação do artigo 1723 do Código Civil. Que Foi descrito na ADI 4277, com o seguinte texto: “Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de interpretação conforme à Constituição”. Sendo assim, a entidade familiar pode e deve ser constituída de acordo com a preferência de cada indivíduo, devendo ser aceita e respeitada a sua escolha.
Vejamos parte fundamental do acórdão do STF:

“(...) 6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de ‘interpretação conforme à Constituição’. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.” (STF - ADI: 4277 DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011,  Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03).
E na esteira do entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a união estável homoafetiva, temos tido decisões dos tribunais brasileiros acerca do direto à pensão por morte como a que segue:
“TRF 4ª Região – Santa Catarina - Previdenciário. Pensão por morte de companheira. União estável. Relação homoafetiva. Princípio da igualdade. Requesitos preenchidos. 1. A decisão do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da ADI 4.277, que reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo deu-se à luz da Constituição Federal. 2. A sociedade de fato estabelecida entre pessoas do mesmo sexo merece tratamento isonômico ao dispensado às uniões heterossexuais, em respeito aos princípios da igualdade, dignidade da pessoa humana e promoção do bem de todos sem preconceito ou discriminação 3. Comprovada a convivência estável entre a autora e a de cujus, caracterizando uma entidade familiar, faz jus a postulante à pensão por morte requerida.” (TRF 4ª Região, ApelReex 0006705-50.2014.404.9999, 6ª T., Rel. Juíza Federal Vânia Hack de Almeida, j. 30/07/2014).
Assim sendo, na perspectiva de que todos são iguais perante a lei, e com os mesmos direitos, entende-se que a união estável homoafetiva é uma entidade familiar e o companheiro ou companheira desta relação, que se baseia no amor e no afeto, terão a garantia de seus direitos.

Vemos como o Supremo Tribunal Federal deu interpretação extensiva ao art. 1.723 do Código Civil, o qual dispõe: Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Embora o texto do Código Civil falasse da relação entre homem e mulher, os Ministros do Supremo estenderam à relação homoafetiva o reconhecimento da mesma como família.
Fundamentada a nossa causa em julgado do STF, pedimos uma liminar para antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional, já que se tratava de um direito à alimentos que não poderia ser postergado.
A Meritíssima Juíza da 3a. Vara de Fazenda de Belém- PA decidiu da seguinte forma, concedendo a liminar:

A antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional pretendida está condicionada à existência conjugada da probabilidade do direito, relacionada à prova inequívoca dos fatos constitutivos do direito material invocado pela parte autora, de forma que o magistrado se convença da verossimilhança de suas alegações, aliado ao perigo de dano, na lição do art. 300, do Código de Processo Civil de 2015. Cumpre anotar que a lei aplicável à concessão de pensão previdenciária por morte é aquela vigente na data do óbito do segurado, conforme estabelece a Súmula 340, do STJ. No caso em comento, a lei aplicável é a Lei Complementar Estadual nº 39/2002 que assim estabelece: Art. 6º Consideram-se dependentes dos Segurados, para fins do Regime de Previdência que trata a presente Lei: I - o cônjuge, a companheira ou companheiro, na constância do casamento ou da união estável, respectivamente; § 2º Considera-se companheiro ou companheira a pessoa que, não sendo casada, mantém união estável com o(a) segurado(a) solteiro(a), viúvo(a), separado(a) judicialmente ou divorciado (a), e habitem sob o mesmo teto perfazendo núcleo familiar, como se marido e mulher fossem os conviventes, por prazo não inferior a 2 (dois) anos, prazo esse dispensado, quando houver prole comum § 5º A dependência econômica das pessoas indicadas nos incisos I e II é presumida e a das demais, prevista nos incisos III, V, VI e VII, deve ser comprovada de acordo com o disposto em regulamento e resolução do Conselho Estadual de Previdência. (NR LC44/2003). É cediço que o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a união estável homoafetiva como entidade familiar (ADPF nº 132/RJ E ADI nº 4.277/DF), bem como o direito do companheiro sobrevivente dessa união em receber a pensão por morte (RE 477554/MG). Pois bem. Compulsando os autos, verifica-se que o autor convivia com o de cujus havia 14 (quatorze) anos, conforme Escritura Pública de fls. 38 e Declaração especial de nomeação de inventariante, às fls. 39. A existência de união estável se torna mais latente quando se vê que o autor consta como beneficiário de seguro acidente firmado pelo de cujus (fls. 88/89); possui o mesmo endereço do ex-segurado; e, ainda, nos documentos de fls. 36/37 (fotografias), embora não estejam datados, vislumbra-se que o autor e o falecido mantinham relação duradoura. Portanto, concluo, nesse primeiro momento da postulação, que o autor vivia em união estável com o ex-segurado à época do óbito. Por consequência, presume-se que o autor era dependente econômico, de acordo como determina o §5º, do art. 6º, da LCE nº 39/2002. Assim, entendo presente a verossimilhança das alegações, bem como o perigo de dano, posto ser o benefício de caráter alimentar. Pelo exposto, DEFIRO A TUTELA PROVISÓRIA determinando que o IGEPREV promova o pagamento da pensão por morte instituída por XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX em favor de XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX.


Portanto, fica demonstrado como, embora ainda haja reação e preconceito por parte do próprio Estado ao reconhecimento da união homoafetiva como família, ao ponto de pretender deixar o companheiro sobrevivente privado de seu direito fundamental aos alimentos devidos como pensão por morte, é possível dobrar, perante o Judiciário, tais posturas reacionárias e inconsequentes.


* Patrícia Leão é advogada atuante na Comarca de Belém do Pará – Tel. (91)981741220 – e-mail: paticialeao2010@yahoo.com.br

quinta-feira, 11 de junho de 2015

OS ERROS DOS JUÍZES NA APLICAÇÃO DAS PENAS

A parte mais difícil da elaboração de uma sentença (embora seja das mais fascinantes) é a fixação da pena-base de acordo com os ditames do art. 59 do Código Penal brasileiro.
Tal dificuldade tem levado muitos juízes ao cometimento de erros que fatalmente podem ser corrigidos em superior instância.
O seguinte Habeas Corpus por mim impetrado perante o Superior Tribunal de Justiça nos dá ideia da quantidade de erros que um magistrado está sujeito a cometer na dosimetria da pena-base.
Segue o trecho do Habeas Corpus impetrado contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Pará julgando uma acusação de estupro:

4. DOSIMETRIA DA PENA – A violação ao art. 59 do Código Penal brasileiro.
Ao fixar a pena base, a Digna Magistrada de 1º grau asseverou (fl. 492):
“Da dosimetria penal: FULANO DE TAL. Atenta as diretrizes estabelecidas nos artigos 59 e 60 da legislação penal, e considerando: 1] a culpabilidade do réu que é do grau máximo, em decorrência do juízo de reprovação de sua conduta criminosa, por ter praticado o ilícito de forma consciente, com intenso grau de censura, de reprovação social de sua conduta, de intensidade dolosa, por sua frieza e premeditação no agir; 2] os bons antecedentes do réu, comprovados pelas certidões acostadas nos autos; 3] a conduta social que pode ser considerada boa; 4] a sua personalidade deturpada, pois abusando de seu posto de trabalho e ainda da de confiança imposta em decorrência desta função, agiu de forma monstruosa; 5] os motivos do crime, totalmente reprováveis, para satisfação de sua lascívia, para dar vazão aos seus mais primevos instintos bestiais; 6] as circunstâncias do crime, ou seja o modus operandi empregado na prática delituosa, reveladores de sua ousadia, sua falta de temor, de sua frieza para fazer os infantes a quedarem-se as suas perversões sexuais; 7] as conseqüências do crime, ou seja, os efeitos de sua conduta, causando prejuízos irreparáveis a higidez psicológica da desafortunada vítima, traumatizando-a, impondo-lhe marcas indeléveis por toda a vida; 8] o comportamento da pequena vítima, que não concorreram para a prática delitiva; Resolvo: Fixar a pena-base em 09 (nove) anos de reclusão”.
Ou seja, fixou o quantum da pena-base próximo da pena máxima.
Na análise da culpabilidade a Meritíssima Juíza afirma ter o recorrente praticado o ilícito de forma consciente. Note-se que, Cezar Bitencourt (Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de Direito Penal, Parte Geral, cit., p.553) alerta para o grave e bastante frequente desacerto dos magistrados ao analisarem a circunstância judicial da culpabilidade afirmando que: "o agente agiu com culpabilidade, pois tinha a consciência da ilicitude do que fazia". Ora, se o agente não tivesse agido com culpabilidade não teria sido condenado; ou, da mesma forma, se não tivesse a consciência da ilicitude do que fazia. É errado, portanto, na dosimetria da pena, repetir-se o juízo de constatação da culpabilidade e de seus elementos. De igual forma, não se pode fundamentar o exame da culpabilidade na alegação de que o acusado tenha agido de forma livre e consciente, pois: "o fato de o acusado ter agido livre e conscientemente não pode fundamentar a exasperação da pena-base, pois, se a ação não fosse consciente e deliberada, inexistiria dolo" (TRF da 4ª Região, 7ª Turma: Apelação Criminal nº 2001.04.01.068867-9/RS, Rel. Des. Federal Fábio Rosa, DJU 08/05/2002 e Apelação Criminal nº 2001.04.01.056394-9/RS, Rel. Des. Fed. Fábio Rosa, DJU 06/03/2002)
Afirmou, ainda na análise da culpabilidade, a frieza e premeditação no agir. Em primeiro lugar, não há nos autos nenhuma indicação de que possa ter havido premeditação, pelo contrário, se prevalecesse a versão da vítima, utilizada pela magistrada para fundamentar a condenação, esta teria sido atacada de súbito pelo acusado em razão da casualidade de estar passando por ele. Não se quer discutir os fatos neste remédio constitucional, mas se pode afirmar que a meritíssima juíza, ao dosar a pena, simplesmente deduz, sem nenhuma justificativa que fosse lastreada na fundamentação da sentença, que o réu teria agido com premeditação, sendo que a dosimetria da pena não pode ser baseada em deduções genéricas. Assim entendeu a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça:
“PROCESSUAL PENAL E PENAL. HABEAS CORPUS. SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL, ORDINÁRIO OU DE REVISÃO CRIMINAL. NÃO CABIMENTO. MAJORAÇÃO DA PENA BASE. ILAÇÕES VAGAS E DESCONTEXTUALIZADAS. FUNDAMENTAÇÃO INADEQUADA. FIXAÇÃO NO MÍNIMO LEGAL CUMPRIMENTO DA PENA. REGIME INICIAL MAIS RIGOROSO. RÉU PRIMÁRIO. PENA-BASE NO MÍNIMO LEGAL. AUSÊNCIA DE MOTIVO LEGÍTIMO. VEDAÇÃO. HABEAS CORPUS DE OFÍCIO PARA REDUÇÃO DAS PENAS. 1. Ressalvada pessoal compreensão diversa, uniformizou o Superior Tribunal de Justiça ser inadequado o writ em substituição a recursos especial e ordinário, ou de revisão criminal, admitindo-se, de ofício, a concessão da ordem ante a constatação de ilegalidade flagrante, abuso de poder ou teratologia. 2. A via estreita do habeas corpus não se presta ao revolvimento da matéria fático-probatória, mas permite o exame da legalidade dos fundamentos expressados na dosimetria e na proporcionalidade da majoração da pena. 3. ILAÇÕES VAGAS E DESCONTEXTUALIZADAS sobre a potencial reiteração de condutas delitivas, com supedâneo no valor econômico do objeto da receptação, não constituem fundamento lídimo para majoração da pena-base, devendo ficar no mínimo legal. 4. Em se tratando de réu primário, fixada a pena-base no mínimo legal e ausente qualquer motivo legítimo a justificar uma maior vigilância do Estado no cumprimento da pena, é vedada a fixação de regime inicial de cumprimento da pena mais rigoroso do que o pertinente à pena aplicada.5. Habeas corpus não conhecido, mas concedida a ordem de ofício para reduzir as penas impostas.(STJ - HC: 204779 SP 2011/0091685-9, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 05/06/2014, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/06/2014)
Com relação à frieza, seria atributo a ser analisado quando da averiguação da personalidade do réu e não no quesito de demonstração da culpabilidade. De qualquer forma, ao analisar as circunstâncias do crime, volta-se a falar na frieza do réu, caracterizando inaceitável bis in idem.
Ao analisar a personalidade do recorrente, diz ter abusado de seu posto de trabalho e ainda da confiança imposta em decorrência desta função. Entretanto, mais adiante, aplica a agravante prevista no art. 61, II, g, do CPB, que se refere ao abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão. Portanto, incide em outro bis in idem proibido por direito.
Por outro lado, a circunstância de se cometer um crime no exercício de um cargo ou profissão nada diz respeito à personalidade da pessoa que está sendo julgada. A personalidade que a lei quer que se analise diz respeito ao caráter do delinquente, o retrato psíquico deste, conceito mais afeto à psicologia do que às Ciências Jurídicas.
O certo é que se pode, no mínimo, afirmar que não havendo elementos suficientes para a aferição da personalidade do agente, mostra-se incorreta sua valoração negativa a fim de supedanear o aumento da pena-base.
Para esclarecer de forma cabal a questão, transcrevemos parte do voto do Exmo. Sr. Minsitro Felix Fischer no Habeas Corpus nº Nº 121.666 - MS (2008/0259480-0), publicado no DJe de 31/08/2009:
“Por outro lado, observo que a pena-base foi majorada, dentre outras, com base na personalidade do agente, ao argumento de que é voltada a prática de atos delituosos. Ocorre que é lamentável que a personalidade ainda conste do rol das circunstâncias judiciais do art. 59, do CP, pois se trata, na verdade, de resquício do Direito Penal de Autor. Além do mais, dificilmente constam dos autos elementos suficientes para que o julgador (que, de regra, não é psiquiatra e nem psicólogo - não sendo, portanto, expert) possa chegar a uma conclusão cientificamente sustentável. Por conseguinte, não havendo dados suficientes para a aferição da personalidade do agente, mostra-se incorreta sua valoração negativa a fim de supedanear o aumento da pena-base.
Nesse sentido, o seguinte precedente:
"PENAL. RECURSO ESPECIAL. DOSIMETRIA DA PENA. INQUÉRITOS E PROCESSOS EM CURSO. MAUS ANTECEDENTES. NÃO CONFIGURAÇÃO. PERSONALIDADE. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS PARA SUA AFERIÇÃO.I - Em respeito ao princípio da presunção de inocência, inquéritos e processos em andamento não podem ser considerados como maus antecedentes para exacerbação da pena-base (Precedentes do Pretório Excelso e do STJ).II - Não havendo elementos suficientes para a aferição da personalidade do agente, mostra-se incorreta sua valoração negativa a fim de supedanear o aumento da pena-base (Precedente)." Recurso especial desprovido.(REsp 745530/RS, 5ª Turma, de minha relatoria, DJU de 12/06/2006).”
Destarte, o referido argumento não é suficientemente apto a justificar, no caso, a elevação da reprimenda.”
Com relação aos motivos do crime afirma: “os motivos do crime, totalmente reprováveis, para satisfação de sua lascívia, para dar vazão aos seus mais primevos instintos bestiais”. Isto já integra o próprio tipo delituoso do crime de estupro. Quando o motivo do agente é o normal à espécie delitiva, não pode o Juiz aumentar a reprimenda, tendo em vista que aquele, por ser inerente ao tipo, já possui a necessária censura, prevista, até mesmo, na pena mínima abstrata. Exemplificando: num caso de furto praticado pelo desejo de obtenção de lucro fácil, o Juiz deve entender pelo não recrudescimento da pena em razão desta circunstância judicial, pois, frequentemente, este é o motivo dos crimes de furto (assim como a satisfação da lascívia, nos crimes de estupro; o enriquecimento, nos crimes fiscais…). Os motivos diversos dos normais à espécie delitiva, portanto, é que devem ser valorados pelo Magistrado. Assim, reprise-se, deve o Juiz agir com a máxima cautela para, no exame dos motivos, não incorrer em dupla valoração (bis in idem).
Especificamente com relação à consideração da “satisfação da lascívia” nos crimes de cunho sexual assim tem se manifestado o STJ:
“ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. DOSIMETRIA. PENA BASE. CULPABILIDADE, MOTIVOS E COMPORTAMENTO DAS VÍTIMAS. DESFAVORABILIDADE RESPALDADA EM ELEMENTOS INERENTES AO TIPO PENAL VIOLADO E NA NEUTRALIDADE DOS ATOS DAS OFENDIDAS. ILEGALIDADE. (...). 1. É ilegal a valoração negativa das circunstâncias previstas no art. 59 do Código Penal com espeque em elementos inerentes ao próprio tipo penal infringido e em dados genéricos. (...) 3. Não constitui fundamento idôneo a respaldar a desfavorabilidade quanto aos motivos do crime, a satisfação da lascívia do agente, eis que inerente à própria tipificação dos delitos sexuais. (...)” (STJ, Relator: Ministro JORGE MUSSI, Data de Julgamento: 05/02/2013, T5 - QUINTA TURMA)
No que diz respeito às consequências do crime, a sentença assim asseverou: “as conseqüências do crime, ou seja, os efeitos de sua conduta, causando prejuízos irreparáveis a higidez psicológica da desafortunada vítima, traumatizando-a, impondo-lhe marcas indeléveis por toda a vida”. Em primeiro lugar, não há nos autos nenhum laudo psicológico que afirme que a vítima permanece traumatizada a tal ponto, o que faz com que se conclua que tais consequências são mais uma dedução que a meritíssima juíza inclui em sua sentença. Tanto que conclui haver “marcas indeléveis” para toda a vida da vítima, mas não aponta em que peça dos autos se encontra a base para chegar a tal dedução. Caso se argumente que toda vítima de estupro fica com traumas, então seria mais uma consequência inerente do próprio tipo penal, não servindo como um plus para aumentar a pena-base do réu.
Com relação ao comportamento da vítima, a sentença assim deixou dito: “o comportamento da pequena vítima, que não concorreram para a prática delitiva”. Portanto, consignando expressamente tal circunstancia na dosimetria da pena, verifica-se que levou isto em consideração para, também, aumentar a pena-base do réu. Ocorre que tal maneira de dosar a pena, entendendo o comportamento “neutro” da vítima como causa de aumento da pena-base, vai de encontro, também, a jurisprudência do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:
PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. FIXAÇÃO DA PENA-BASE. CULPABILIDADE. MAIOR REPROVABILIDADE DA CONDUTA. CONDUTA SOCIAL. PROCESSO EM CURSO. IMPOSSIBILIDADE. CONSEQUÊNCIAS DO CRIME. MORTE DA VÍTIMA. CIRCUNSTÂNCIA INERENTE AO PRÓPRIO TIPO. COMPORTAMENTO NEUTRO DA VÍTIMA. IMPOSSIBILIDADE DE AUMENTAR A SANÇÃO. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.1. [...]4. O comportamento da vítima tachado como neutro não pode ser valorado como prejudicial ao acusado.5. Habeas corpus parcialmente concedido para reduzir a pena imposta ao paciente, relativamente ao homicídio, a 12 anos de reclusão, mantidos os demais termos da sentença e do acórdão. (HC n.º 83066/DF, Rel. Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Sexta Turma, julgado em 25/8/2009 e DJe 14/9/2009).
Por fim, tendo sido admitidos os bons antecedentes e boa conduta social do recorrente, a pena base deveria ter sido fixada próximo ao previsto para a pena mínima. Conforme iterativa jurisprudência dos tribunais:
“A pena-base deve tender para o grau mínimo quando o acusado for primário e de bons antecedentes” (TJMG, JM 128/336).

Dispôs o Acórdão que julgou a apelação:
“Pugna ainda o apelante pela redução da pena base aplicada para o mínimo legal e pela desconsideração das agravantes e afastamento das causas de aumento. As circunstâncias do art. 59 do CP foram sopesadas corretamente, sendo na maioria desfavoráveis ao apelante, o que determina, por conseguinte, a pena base acima do mínimo legal, devendo permanecer a aplicada pelo juízo a quo em 09 (nove) anos de reclusão.”
Estava evidente que o julgado nem havia observado as argumentações do recorrente na sua apelação, e, assim sendo, foi necessária a interposição de embargos de declaração a fim de que a Câmara Julgadora suprisse a omissão e apreciasse a integralidade dos argumentos acima expostos, analisando especificamente cada uma das circunstâncias previstas no art. 59 do CPB para o cálculo da pena base.
O Acórdão que julgou os embargos de declaração assim dispõe:
EMENTA: (...)6. As circunstâncias do art. 59 do CP foram sopesadas corretamente, sendo aplicada pena base acima do mínimo legal, plenamente justificável pela existência de pelo menos uma circunstância judicial desfavorável. (...). VOTO: (...)Aduz finalmente que ocorreu omissão na apreciação dos argumentos que contestam a forma incorreta que fora calculada a pena. No entanto, verifica-se do acórdão que os argumentos dispensados com relação à dosimetria da pena, foram analisados, demonstrando que as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP foram devidamente sopesadas, sendo justificável a aplicação da pena base acima do mínimo legal, quando presente pelo menos uma circunstância judicial desfavorável”
O Acórdão proferido nos embargos de declaração não supriu a omissão apontada, pois, no que tange à aplicação da pena base, quase repetiu o mesmo que já havia sido dito no Acórdão que julgou a apelação.
A única modificação era que, no Acórdão que julgou a apelação, se afirmou que a maioria das circunstâncias era desfavorável ao recorrente e manteve-se a pena base em 09 (nove) anos de reclusão, sendo que, no Acórdão que julgou os embargos de declaração, se afirma existir pelo menos uma circunstância judicial desfavorável, mas manteve-se a pena base no mesmo patamar de 09 (nove) anos, dizendo ser justificável a aplicação da pena base acima do mínimo legal.
Por si só isto já era contraditório, pois, se foi mudada a fundamentação, passando-se a dizer que pelo menos uma circunstância judicial era desfavorável ao réu, em vez de se dizer, como antes se disse no julgamento da apelação, que a maioria das circunstâncias lhe eram desfavoráveis, então não se justifica que a pena base tivesse sido mantida no mesmo patamar de 09 (nove) anos.
E, diga-se, que nove anos de reclusão é muito acima do mínimo legal, é mais do que a média da pena prevista, é próximo ao patamar máximo previsto para a pena.
Por outro lado, ao, simplesmente, dizer que pelo menos uma circunstância era desfavorável ao réu, deixou de dizer, sendo omisso o Acórdão, qual era esta circunstância ou quais eram estas circunstâncias, sendo que, ao mesmo tempo, deixou de analisar detidamente cada um dos argumentos trazidos, desde a apelação e nos embargos declaratórios, a respeito da forma incorreta como foram sopesadas cada uma das circunstâncias questionadas por terem sido indevidamente consideradas de forma desfavorável ao réu.
Cabia ao julgador apreciar todas as circunstâncias judiciais e avaliá-las isoladamente, para, empós disto, aplicar a pena-base.
Ao revés disto, o Acórdão que julgou a apelação e o Acórdão que julgou os embargos de declaração simplesmente referiu-se às circunstâncias judiciais, previstas no art. 59 do Código Penal, de forma genérica.
Por todos esses motivos, foi necessária a interposição de embargos de declaração nos embargos de declaração, tendo o Acórdão que os julgou ficado assim ementado:
“EMENTA: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM APELAÇÃO CRIMINAL - PLEITO DE REAPRECIAÇÃO DE MATÉRIAS REITERADAMENTE ANALISADAS E IMPROVIDAS ANTERIORMENTE. IMPROCEDÊNCIA. 1. Ao compulsar a sentença condenatória constata-se que o Magistrado a quo sopesou acertadamente todas as circunstâncias judiciais, elencadas no artigo 59 do Código Penal, tendo inclusive considerado a primariedade e os bons antecedentes, como circunstâncias favoráveis, e fixou a pena-base acima do mínimo legal previsto, em razão da presença de seis circunstâncias judiciais desfavoráveis (culpabilidade, personalidade do agente, motivos, circunstâncias do crime, consequências do crime e o comportamento da vítima que em nada concorreu para a prática delituosa). 2. As circunstâncias foram devidamente sopesadas e fundamentadas, dimensionando a culpabilidade do acusado pela intensidade de reprovação penal, o qual friamente arrastou a vítima para um banheiro e pressionando-a contra a parede a abusou sexualmente, sem motivo aparente, mas tão somente para satisfazer sua lascívia, mesmo sangrando devido ao primeiro abuso sexual sofrido momentos antes, demonstrando assim, tratar-se de pessoa de má índole e causando na vítima prejuízos irreparáveis a higidez psicológica e traumatizando-a. 3. Desta forma, a pena base fixada em 09 (nove) anos de reclusão fora devidamente aplicada, proporcional ao grave delito praticado contra uma menor de idade, não havendo qualquer contradição ou omissão tanto no acórdão em sede de apelação como nos Embargos de Declaração, que elucidaram detidamente sobre a aplicação da pena base na sentença condenatória, ante a presença de seis circunstâncias judiciais desfavoráveis. 4. Ressalta-se que a fundamentação esposada no acórdão dos Embargos de Declaração de que havendo pelo menos uma circunstância judicial desfavorável já autoriza a aplicação da pena base acima do mínimo legal, não se trata de omissão e sim de entendimento pacífico nos tribunais superiores, corretamente assentado para motivar a pena base acima do mínimo legal, e neste caso, por versar seis circunstâncias desfavoráveis, ante a gravidade delituosa, indiscutível a aplicação da pena base aferida pelo juízo a quo. 5. Conheço dos Embargos de Declaração e nego-lhes provimento, nos termos da fundamentação e condeno o embargante a pagar a multa de R$100,00 (cem reais), em decorrência do caráter nitidamente protelatório dos presentes embargos. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO CONHECIDO E IMPROVIDOS. DECISÃO UNANIME.”
Dessa forma verificamos que o Acórdão corroborou a sentença de 1º grau, a qual fixou o quantum da pena-base a partir de uma fundamentação vaga e deficiente, que se valia de elementos inseridos já no tipo penal para aumentar a pena-base, além de incidir em bis in idem na consideração do mesmo fato na análise de mais de uma circunstância judicial, o que nulifica a sentença no tocante à dosimetria da pena.
Entretanto, o Acórdão proferido nos embargos de declaração nos embargos de declaração foi além e, mais uma vez, modificou a sua fundamentação, desta feita para prejudicar o réu, pois anteriormente a Corte tinha afirmado que pelo menos uma circunstância judicial era desfavorável ao réu e agora passou a afirmar que 6 (seis) circunstâncias judiciais o prejudicavam.
E mais, aduziu fundamentos não utilizados pelo juiz de 1º grau quando fez a dosimetria da pena, como se quisesse suprir as deficiências e nulidades na fundamentação da pena base aplicada pelo juízo monocrático, quando seria seu dever, ao constatar a deficiência de fundamentação, anular a decisão de 1º grau ou desconsiderar as circunstâncias judiciais erroneamente aplicadas em desfavor do réu reduzindo, assim, a pena base aplicada.
Não é possível ao tribunal ad quem, em sede de recurso de apelação exclusivo da defesa, alterar a fundamentação da sentença, como fizeram os senhores desembargadores paraenses. Ora, se a Corte ad quem entende que a fundamentação é suficiente, deve manter a sentença; caso conclua que a motivação é inidônea, deve corrigir a decisão. O que não é possível, em sede de recurso exclusivo da defesa, é manter a sentença utilizando-se de outros fundamentos, que não foram utilizados pelo juízo de origem.
Tal entendimento é unânime na jurisprudência, consoante se observa do seguinte precedente de relatoria do Eminente Ministro Cezar Peluso do Supremo Tribunal Federal:
“[...] Não é lícito às instâncias superiores suprir, em habeas corpus ou recurso da defesa, com novas razões, a falta ou deficiência de fundamentação da decisão penal impugnada [...]” (HC 87.041, Segunda Turma, Rel. Min. Cezar Peluso, DJU 24.11.2006).
De fato, não pode a instância subsequente, em recurso exclusivo da defesa, complementar a falta ou deficiência da motivação da decisão impugnada, acrescentando-lhe novos fundamentos não aventados pelo juízo a quo.
O que prevaleceu, entretanto, é que a Corte de Apelação corrobora a decisão de 1º grau tomada na 1ª. fase de dosimetria da pena, mantendo a pena base em 09 (nove) anos de reclusão.
O objetivo do presente tópico do Habeas Corpus não é uma tentativa de revolver prova, mas sim de impugnação a clara insuficiência de fundamentação no exercício de fixação da reprimenda.
Segundo orientam a doutrina e a jurisprudência, a pena deve ser fixada com fundamentação concreta e vinculada, tal como exige o próprio princípio do livre convencimento motivado. Ela não pode ser estabelecida acima do mínimo com supedâneo em referências vagas e dados não explicitados.
A Turma Julgadora corroborou a análise da culpabilidade do acusado na forma como feita pela Juíza de 1º grau, que a levou a afirmar, na sentença, que a culpabilidade do réu era do grau máximo, ficando caracterizada afronta aos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais prevalentes, em razão da mistura de conceitos de culpabilidade, dolo, exclusão de culpabilidade e, até mesmo, imputabilidade, afrontando, dessa forma o art. 59 do Código Penal Brasileiro.
Como já dito, a Turma Julgadora corroborou a sentença de 1º grau que, ao analisar as circunstâncias do crime, voltou a falar na frieza do réu, o que já tinha sido considerado na análise da culpabilidade, considerando a frieza com que teria agido o réu em dois momentos de análise das circunstâncias, caracterizado o bis in idem, afrontando, dessa forma o art. 59 do Código Penal Brasileiro.
O Tribunal acrescenta análise da personalidade do réu não afirmado pelo juízo de 1º grau ao dizer que se tratava de pessoa de má-índole, quando, na verdade, o que se tem é que não há elementos suficientes para a aferição da personalidade do agente, mostrando-se, portanto, incorreta sua valoração negativa a fim de supedanear o aumento da pena-base.
Com relação aos motivos do crime, o Tribunal corrobora a sentença de primeiro grau que utilizou elementos que já integram o tipo criminal, como a satisfação da lascívia, para considerá-los como motivos do crime que desfavorecem o réu, estando caracterizado o bis in idem, afrontando, dessa forma o art. 59 do Código Penal Brasileiro.
No que diz respeito às consequências do crime, o Tribunal de Justiça do Estado do Pará corrobora a afirmação do primeiro grau de que a vítima ficou traumatizada e com prejuízos irreparáveis a sua higidez psicológica, o que, como já demonstrado, não passou de mera dedução sem base em elementos concretos dos autos.
Por outro lado, se questiona acerca dos bons antecedentes do réu e a da sua boa conduta social, duas circunstâncias favoráveis ao réu, reconhecidas pela própria sentença e pelo julgamento da Corte de Apelação, os quais, aliados às demais circunstâncias que não lhe prejudicam, deveriam possuir o condão de atrair a pena do réu para próximo da pena mínima.
Houve violação expressa do art. 59 do CPB, que assim dispõe: “Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I - as penas aplicáveis dentre as cominadas; II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos.
O que se quer deixar claro aos Senhores Ministros é que a fixação do quantum da pena a partir de uma fundamentação vaga e deficiente nulifica a sentença no tocante à dosimetria da pena, sendo que o Superior Tribunal de Justiça já enfrentou situações semelhantes ao caso dos autos tendo assim decidido:
RECURSO ESPECIAL. PENAL. ESTUPRO. ACÓRDÃO RECORRIDO. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA. PENA-BASE. EXASPERAÇÃO. INVIABILIDADE. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. CONTINUIDADE DELITIVA. FRAÇÃO DE AUMENTO. MAJORAÇÃO. INVIABILIDADE. AUSÊNCIA DE APELAÇÃO MINISTERIAL. 1. Não há omissão, contradição ou obscuridade a ser sanada, pois a Corte a quo esclareceu que estabelecia a pena-base no mínimo legal em razão de o Juízo de primeiro grau ter incorrido em erro material, ao fixá-la duas vezes, bem como explicitou porque não alterou a fração de aumento pela continuidade delitiva, estabelecida na sentença. 2. A fundamentação de caráter genérico ou que utiliza elementares do tipo penal não se presta para considerar como negativas as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal. 3. As assertivas de que a culpabilidade é altamente reprovável, de que a personalidade não é boa e a de que a conduta causou trauma às vítimas, desacompanhadas de outros elementos concretos, têm natureza genérica, motivo pelo qual não constituem fundamento apto para exasperar a pena-base. 4. A satisfação da lascívia, utilizada para considerar como negativos os motivos e as circunstâncias do crime, constitui elementar do crime de estupro, não se prestando para exasperar a pena-base. Ocorrência, ainda, de bis in idem. 5. Mostra-se inapropriada a utilização do fato de as vítimas serem menores de idade, do qual se lançou mão para considerar como negativas as circunstâncias do crime, uma vez que se cuidou de condenação por estupro com violência presumida (antigo art. 224, a, do CP), em que a menoridade é inerente ao próprio delito. 6. Não tendo o Ministério Público apelado contra a sentença e não tendo havido modificação dos parâmetros fáticos ou da definição jurídica dela constantes quando do julgamento da apelação defensiva, não poderia a Corte de origem exasperar a fração de aumento pela continuidade delitiva, fixada pelo julgador singular. Se assim otivesse feito, teria incorrido em indevida reformatio in pejus. 7. Situação concreta diversa daquelas hipóteses em que, ao dar nova interpretação aos fatos ou a eles atribuir outra definição jurídica, mesmo em apelação exclusiva da defesa, o Tribunal não está adstrito aos parâmetros utilizados pelo julgador singular, devendo observar, como teto, apenas o quantum da pena que havia sido fixado na sentença. 8. Recurso especial improvido. (STJ - REsp 1094793 / PR, RECURSO ESPECIAL 2008/0207556-0, Relator Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Órgão Julgador T6 - SEXTA TURMA, Data do Julgamento 04/06/2013, Data da Publicação/Fonte DJe 12/06/2013)
"HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO SIMPLES E HOMICÍDIO SIMPLES TENTADO. DOSIMETRIA DA PENA. FIXAÇÃO DA PENA-BASE. CULPABILIDADE, MOTIVOS, CIRCUNSTÂNCIAS E CONSEQUÊNCIAS DO CRIME. FUNDAMENTAÇÃO. AUSÊNCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. EXASPERAÇÃO DA PENA COM FUNDAMENTO NOS ANTECEDENTES DO RÉU. POSSIBILIDADE. 1. Em relação à culpabilidade, o magistrado singular se limitou a afirmar que 'o réu agiu de forma absolutamente censurável, sem se intimidar com o mal que poderia causa à vítima com a sua conduta de passar a arma ao executor dos disparos.' 2. Na exasperação da pena-base com fundamento na culpabilidade, para a demonstração de maior ou menor censurabilidade da conduta, deve o magistrado enfatizar a realidade concreta em que esta ocorreu, bem como a intensidade do dolo do agente, o que, no caso dos autos, não ocorreu. 3. Em relação aos motivos, circunstâncias e consequências do crime, também não logrou êxito o Juízo de primeiro grau em justificá-los, tendo se limitado a afirmações genéricas de que o motivo do crime foi 'uma desavença', 'a vítima estava desarmada' e 'as consequências são graves, consistentes na subtração da vida de um jovem de 24 anos', eventualidades, em geral, existentes em crime de homicídio, podendo ser consideradas inerentes ao próprio tipo do delito em questão e, portanto, inidôneas para justificar o aumento da pena. 4. No tocante aos antecedentes, a ordem não merece concessão, pois o art. 59 do Código Penal prevê expressamente a consideração dessa circunstância por ocasião da aferição da pena-base. 5. Ordem parcialmente concedida para reduzir a pena-base imposta ao paciente para 7 anos, resultando a pena definitiva em 8 anos e 2 meses de reclusão, no regime inicial fechado." (HC 171.395⁄RS, 6.ª Turma, Rel. Min. SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, DJe de 01⁄02⁄2012.)
RECURSO ESPECIAL. PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE. ART. 59 DO CÓDIGO PENAL. INEXISTÊNCIA DE MOTIVAÇÃO CONCRETA. ELEMENTARES DO TIPO. NULIDADE. PRECEDENTES DO STJ E DO STF. PRESCRIÇÃO. 1. Não pode o magistrado sentenciante majorar a pena-base fundando-se, tão-somente, em referências vagas, sem a indicação de qualquer circunstância concreta que justifique o aumento, além das próprias elementares comuns ao tipo. 2. Precedentes do STJ e do STF. 3. Recurso provido para, fixada a pena-base no mínimo legal, reconhecer prescrição da pretensão punitiva estatal superveniente, nos termos do art. 107, inciso IV, c.c. os arts. 109, inciso V, e 110, § 1º, do Código Penal. (REsp 705.921/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 22/05/2007, DJ 29/06/2007, p. 693)
PENAL. RECURSO ESPECIAL. ART. 213, DO CP. DOSIMETRIA DA PENA. FIXAÇÃO DA PENA-BASE. FUNDAMENTAÇÃO. I - A pena deve ser fixada com fundamentação concreta e vinculada, tal como exige o próprio princípio do livre convencimento fundamentado (arts. 157, 381 e 387 do CPP c/c o art. 93, inciso IX, segunda parte, da Lex Maxima). Dessa maneira, considerações genéricas, abstrações ou dados integrantes da própria conduta tipificada não podem supedanear a elevação da reprimenda (Precedentes do STF e STJ). II - In casu, verifica-se que a r. decisão de primeiro grau apresentava em sua fundamentação incerteza denotativa ou vagueza, carecendo, na fixação da resposta penal, de fundamentação objetiva imprescindível. Não haviam argumentos suficientes a justificar, no caso concreto, a fixação da pena-base em 06 (seis) anos e 06 (seis) meses de reclusão. III - Dessa forma, irretorquível o v. acórdão proferido pelo e. Tribunal a quo, que reduziu a pena-base para seu mínimo legal em razão da falta de argumentos aptos a embasar a fixação da pena acima de seu patamar mínimo. Recurso desprovido. (REsp 879.853/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 09/10/2007, DJ 19/11/2007, p. 272)
RECURSO ESPECIAL. PENAL. PARCELAMENTO ILEGAL DE SOLO URBANO EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE. MAUS ANTECEDENTES. INQUÉRITOS E PROCESSOS SEM O TRÂNSITO EM JULGADO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA NÃO-CULPABILIDADE. ART. 59 DO CÓDIGO PENAL. INEXISTÊNCIA DE MOTIVAÇÃO CONCRETA. ELEMENTARES DO TIPO. NULIDADE. PRECEDENTES DO STJ E DO STF. PRESCRIÇÃO. 1. Na fixação da pena-base e do regime prisional, inquéritos e processos em andamento não podem ser levados em consideração como maus antecedentes, em respeito ao princípio da não-culpabilidade. 2. Não pode o magistrado sentenciante majorar a pena-base fundando-se, tão-somente, em referências vagas, sem a indicação de qualquer circunstância concreta que justifique o aumento, além das próprias elementares comuns ao tipo. 3. Precedentes do STJ e do STF. 4. Recurso provido para, restabelecida a individualização da pena da sentença de primeiro grau, reconhecer prescrição da pretensão punitiva estatal superveniente, nos termos do art. 107, inciso IV, c/c. os arts. 109, inciso V, e 110, § 1º, do Código Penal. (REsp 605.836/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 18/05/2006, DJ 12/06/2006, p. 533)
DOSIMETRIA DA PENA. CIRCUNSTÂNCIAS DESFAVORÁVEIS INERENTES DO TIPO PENAL. Os elementos inerentes ao próprio tipo penal não podem ser considerados para a exasperação da pena-base. A primeira fase da dosimetria é o momento em que o julgador efetivamente individualiza a pena pelas circunstâncias ali analisadas. Porém, o julgador não pode agir com livre arbítrio, deve motivar as razões que foram seguidas, e demonstrá-las concretamente. No caso, trata-se de crime de tortura em que o juiz monocrático usou como parâmetro para fundamentar o aumento da pena, no tocante à culpabilidade, o fato de o crime ter sido praticado com requinte e crueldade. Quanto aos motivos, justificou a exasperação da pena por terem sidos ligados à mera maldade, intolerância, desequilíbrio emocional e insensibilidade. A Turma, por maioria, entendeu que a sentença proferida desatendeu ao princípio da motivação nas decisões judiciais, porque, ao analisar a culpabilidade e os motivos, utilizou argumentos integrantes do próprio tipo penal, tortura, para majorar a pena na sua fase inicial. Precedentes citados: HC 185.633-ES, DJe 28/6/2012, e HC 149.907-SE, DJe 18/6/2012. (STJ - HC 227.302-RJ, Rel. Gilson Dipp, julgado em 21/8/2012)
Desta maneira, carece de fundamento legal o aumento da pena-base, destoando dos ditames do art. 59 do CPB, sendo de rigor que seja declarada a nulidade da sentença e, caso não seja este o v. entendimento, que a pena-base seja estabelecida próxima ao mínimo legal. Pelo exposto, aguarda-se seja reconhecida a nulidade da sentença, uma vez que a dosimetria da pena carece de fundamentação. Subsidiariamente, requer-se que seja a pena-base reduzida para próximo do mínimo legal, afastando-se a violação ao artigo 59 do Código Penal.


terça-feira, 25 de janeiro de 2011

FALTA DE ESTABELECIMENTO PRISIONAL ADEQUADO PARA MULHERES NAS COMARCAS DO INTERIOR DO ESTADO DO PARÁ

A acadêmica do curso de Direito, Patrícia Leão, em conjunto com a advogada Maria de Nazaré Pinheiro Corrêa, impetraram Habeas Corpus liberatório em favor de E.A.M., presa na Comarca de Cametá-PA e acusada da prática do crime previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006 (tráfico de drogas).

A paciente foi presa em flagrante no dia 14/04/2010, sendo este mantido pelo juízo a quo que, na mesma oportunidade determinou a transferência da acusada para o Centro de Reeducação Feminino do Coqueiro, na região metropolitana de Belém do Pará, em virtude de não haver estabelecimento prisional adequado, na comarca, para pessoas do sexo feminino, sendo a transferência efetivada no dia 20/04/2010.

Este tipo de transferência, para a capital, de pessoas do sexo feminino presas em várias comarcas do interior do Estado do Pará é reflexo, ainda, do que ocorreu na Comarca de Abaetetuba-PA, quando uma presa ficou vários dias na mesma cela em que estavam presos pessoas do sexo masculino e, dentro do cárcere, sofreu abusos sexuais.

Ocorreu que, tendo o Juízo de Cametá-PA determinado a notificação da paciente para apresentar defesa prévia em despacho datada de 02/06/2010, somente no dia 05/07/2010, mais de um mês depois, a carta precatória foi remetida à Comarca de Belém a fim de que se notificasse a acusada que havia sido transferida para Belém.

Entretanto, por falha da Secretaria do Juízo de Cametá-PA, a carta precatória foi remetida à Comarca de Belém sem os documentos imprescindíveis ao seu cumprimento, razão pela qual a Juíza da Vara de Cartas Precatórias Criminais de Belém, determinou que fosse oficiado ao Juízo de Cametá para que complementasse a carta precatória, ocasionando o retardo em seu cumprimento.

Em face do atraso no cumprimento da notificação da acusada foi que as impetrantes do Habeas Corpus requereram a revogação da custódia da paciente, por restar evidenciado o excesso de prazo para o início da instrução processual, em virtude da falha da Secretaria do Juízo.

Na petição de Habeas Corpus as impetrantes já alertavam:

“A paciente em nada contribuiu para o atraso da marcha processual. Sabe-se que é forçoso que se evite a repetição de atos lamentáveis acontecidos no município de Abaetetuba. Mas a paciente não poderia ser penalizada em razão do Estado não conseguir manter infraestrutura necessária em todas as comarcas para custodiar presas do sexo feminino, pois, como qualquer cidadão, paga seus impostos, ainda que indiretos. Deve ser ressaltado que a regra é que o preso provisório permaneça custodiado no município onde reside, onde poderá ter assistência de seus familiares, pois, afinal, nem se sabe se será condenado ou não. Tendo sido transferida para local distante da Comarca onde reside já sofre prejuízo. Não poderia ser penalizada novamente pelo atraso da marcha processual (decorrente de falhas do cartório judicial) enquanto aguardava presa ser notificada acerca da acusação que lhe faz o mesmo Estado que não lhe garantiu a permanência na Comarca onde reside”.

Citando decisão do Supremo Tribunal Federal em caso semelhante ao da paciente, as impetrantes afirmaram no Habeas Corpus:

“O tema que agora se debate não é estranho, inclusive, ao Supremo Tribunal Federal. No Habeas Corpus nº 101.272, o Ministro Cezar Peluso, ao deferir o pedido de liminar, assim asseverou:

‘É caso de liminar.

Conquanto o juízo de primeiro grau, ao prestar as informações (fls. 127 e seguintes), tenha afirmado que a demora processual não é imputável ao Poder Judiciário, noto que não se refutou a alegação da defesa de que a demora para o início da instrução se deveu ‘em razão dos acusados estarem custodiados em Caxias/MA, em virtude da superlotação da Cadeia de Codó, e sobretudo, por falha da Secretaria Judicial da 3ª Vara de Caxias, que procedeu a notificação incompleta dos três acusados, em autos de Carta Precatória’ (fl. 129).

Ora, é fato incontroverso que o Tribunal local concedeu habeas corpus para que o co-réu INAJARO, preso nas mesmas circunstâncias que os ora pacientes, pudesse responder solto ao processo, diante do excesso de prazo sem intimação para o oferecimento de defesa preliminar (fls. 121-125). Assim, o indeferimento, pelo mesmo Tribunal, de medida idêntica impetrada em favor dos demais co-réus representa, a princípio, violação ao disposto no art. 580 do Código de Processo Penal’.

Vemos que é caso de extrema similitude com o da paciente. A demora para o início da instrução se deu em razão da denunciada estar custodiada em Comarca diferente daquela em que tramita o processo, em virtude de não haver infraestrutura para custodiar presas do sexo feminino na Comarca de Cametá, e sobretudo, por falha da secretaria que remeteu a carta precatória para a Comarca de Belém sem os documentos necessários para o cumprimento da diligência, gerando excesso de prazo sem intimação para o oferecimento da defesa preliminar”.

Tais considerações já haviam sido feitas pelas impetrantes ao Juízo da Comarca de Cametá-PA, porém a Magistrada da Comarca de Cametá argumentou que já havia marcado a audiência de instrução julgamento e indeferiu o pedido de relaxamento da prisão.

Entretanto, na data da audiência de instrução e julgamento, em dezembro de 2010, o que não era razoável aconteceu: a Superintendência do Sistema Penal (SUSIPE) do Estado do Pará não apresentou a presa e oficiou ao Juízo de Cametá informando que, por falta de recursos orcamentários que garantissem a infraestrutura para o transporte da presa e o pagamento de diárias dos funcionários da SUSIPE, a ré não seria apresentada para participar da audiência. E a audiência não se realizou, mas, ainda assim, o Juízo da Comarca de Cametá deixou de atender imediatamente o pedido da Defesa para relaxamento da prisão por excesso de prazo.

A postura da SUSIPE e do Juízo a quo foi comunicada ao Desembargador Ronaldo Valle, relator do processo de Habeas Corpus, que, então, deferiu o pedido de liberdade da ré.

No corpo de seu voto, asseverou o Desembargador:

“Dentre os argumentos esposados na impetração, com vista a restituição da liberdade da paciente um merece acolhida, qual seja, o que se refere ao excesso de prazo de sua prisão sem que a instrução processual tenha sido concluída.

(...)

Vê-se, assim, que o atraso de um mês para remeter a carta precatória para a comarca de Belém a fim notificar a paciente para ofertar a defesa preliminar, bem como, a falha da Secretaria do Juízo ao deixar de anexar a ela os documentos imprescindíveis ao seu regular cumprimento, foram determinantes para a mora aqui reclamada, considerando que a paciente aguardava presa, desde o dia 14/04/2010, a oportunidade de apresentar a defesa prévia, e referidos percalços ocasionaram a estagnação do processo, ante a falta de decisão acerca do recebimento da denúncia, eis que tal ato depende da apresentação da referida defesa.

Importante referir, que apesar de haver necessidade de expedição de carta precatória, em virtude de a paciente estar presa em comarca diversa da qual tramita o processo, todavia o alongamento da instrução criminal por 07 (sete) meses, sem que sequer tenha sido ouvida pelo juízo, não se mostra razoável. Vale ressaltar que o seu interrogatório marcado para o dia 09 do corrente mês deixou de ser realizado em razão de a paciente não ter sido apresentada pela SUSIPE, por problemas de ordem administrativa, (falta de recursos orçamentários), sendo remarcada para o dia 16/12/2010, ou seja, mais de oito meses depois da prisão da paciente.

Nesse contexto, restou evidenciado que, ultrapassado se acha, e muito, o tempo legal para a entrega da prestação jurisdicional do Estado-Juiz, excesso para o qual a paciente tampouco sua defesa concorram, razão porque não pode permanecer segregada por tempo indeterminado, eis que já se tem computado mais de 07 (sete) meses, do dia de sua prisão até a presente data, não foi sequer ouvida pelo juízo e não existem elementos indicativos da complexidade do processo, porquanto a paciente é a única denunciada no feito em questão”.

Felizmente, as Câmaras Criminais Reunidas acompanharam o voto do relator Desembargador Ronaldo Valle, e sanaram o constrangimento ilegal por excesso de prazo na prisão concedendo a liberdade para a paciente.

Entretanto, fica um alerta. É certo que não pode voltar a acontecer com mulheres presas de justiça o que ocorreu na Comarca de Abaetetuba, porém, com esta justificativa, não pode o Estado-Administração, e muito menos o Estado-Juiz, deixar que as presas provisórias permaneçam sem julgamento por tempo além do razoável. Correto seria haver estabelecimentos adequados para a permanência de pessoas sexo feminino presas na mesma comarca por onde tramitam os seus respectivos processos, pois isto garantiria a celeridade de seus julgamentos, além de que é um direito da presa provisória, que nem sequer se sabe se será condenada, permanecer onde possa ter assistência mais direta de seus parentes. Porém, já que não há infraestrutura estatal para tanto e, se as presas nas comarcas do interior necessitam ser transferidas para os presídios femininos na capital do Estado do Pará, não pode o Estado-Administração permitir que, com justificativas não aceitáveis de falta de verbas orçamentárias, as presas deixem de ser apresentadas nas audiências dos seus processos, pois é direito fundamental de qualquer pessoa estar presente no decorrer do processo em que é acusada de crime, especialmente se estiver presa. Por sua vez, detectando o Estado-Juiz que a administração não garante a infraestrutura necessária para observância de tais direitos das presas, não há outra solução a não ser relaxar a prisão da presa provisória a fim de evitar o constrangimento ilegal por excesso de prazo na prisão sem julgamento dos processos.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

EMBARGOS DE TERCEIRO EVITA A EXECUÇÃO DE DESPEJO COMPULSÓRIO


OS FATOS
A acadêmica do curso de direito Patrícia Leão está atuando como estagiária, em conjunto com a advogada Maria Corrêa, na ação de embargos de terceiro proposta por I. N. C. a fim de evitar que a autora seja despejada do imóvel que já possui e onde reside há vários e vários anos.
O despejo compulsório foi decretado contra uma empresa panificadora em favor da falecida cidadã portuguesa B. dos S. D.
A ordem de despejo já estava sendo executada e os pertences da autora já haviam sido todos colocados em cima de vários caminhões quando a advogada Maria Correa conseguiu que a Juíza da 3ª. Vara Cível de Belém despachasse a ação de embargos de terceiro concedendo a manutenção de posse para a autora despejada e suspendendo a execução do mandado de despejo.
A estagiária Patrícia Leão se fez presente no imóvel no momento em que o oficial de justiça executava o despejo, a fim de estar acompanhando a embargante I. N. C., e pôde verificar in loco a maneira como é executada uma ordem de despejo.
O oficial de justiça chegou à casa da embargante acompanhado da Polícia Militar (ROTAM!!!) e dos advogados da parte contrária, sendo que, até mesmo, as panelas onde estava sendo cozinhado o almoço da família da embargante foram retiradas do fogo. Os eletrodomésticos e móveis da casa, então, foram todos empilhados em cima de caminhões contratados pela parte contrária para transportar os móveis.
É certo que I. N. C. já havia sido visitada pelo oficial de justiça, não tendo concordado em sair do imóvel onde é seu lar, pois argumentou que aguardava decisão da Justiça sobre os embargos de terceiro que havia proposto. Entretanto, nenhum segundo aviso foi dado pelo oficial de justiça para embargante, especificamente acerca do dia em que compareceria acompanhado da polícia militar.
Aqui, deve ser ressaltado que nem se podia imaginar que o efetivo de Polícia Militar cujo serviço seria utilizado na execução do despejo seria a ROTAM (Rondas Táticas Metropolitanas) que se acredita tenha por missão atuar preventiva e/ou repressivamente contra a chamada "criminalidade violenta". Com certeza a família da embargante não é nenhum grupo de criminosos violentos para ter passado pelo constrangimento de ter a polícia tática presente na sua sala de estar.
Como não havia sido avisada da data exata em que o oficial de justiça compareceria com a polícia para executar o despejo, a embargante estava desprevenida e não tinha lugar para onde levar os seus móveis. O oficial de justiça alegava que havia provimento do Tribunal de Justiça que não permitia, em caso de despejo, que os móveis fossem levados  para um depósito público. Consequência: ou a embargante conseguia, por um passe de mágica, encontrar um lugar onde pudesse deixar seus móveis e eletrodomésticos ou então os objetos seriam deixados a céu aberto onde certamente seriam saqueados.
Em que pese todas as argumentações da estagiária Patrícia Leão sobre a existência dos embargos que estavam para ser despachados e sobre a desproporção que seria deixar os móveis pertencentes à embargante a céu aberto, o oficial de justiça continuava a execução do despejo e continuava a empilhar os móveis da embargante em cima dos caminhões. Até no programa de reportagens “Barra Pesada” o despejo foi noticiado, mostrando-se imagens do local onde estava ocorrendo.
Até que, finalmente, houve o pronunciamento da Senhora Juíza da 3ª. Vara Cível e a execução do despejo foi suspensa. O oficial de Justiça teve que desempilhar os móveis pertencentes à embargante e devolvê-los para o interior da casa. Não seria mais aconselhável que o senhor meirinho tivesse aguardado o pronunciamento judicial? E se a suspensão do despejo tivesse sido concedida um dia depois de executada a ordem, teriam os móveis da embargante dormido a céu aberto para serem saqueados pela população?
O DIREITO
A embargante I. N. C. alega na ação de embargos de terceiro que detém a posse do imóvel que se pretende despejar. Tanto que, sobre uma parte do imóvel foi proferida a seu favor uma sentença de usucapião. O Magistrado da 6ª Vara Cível de Belém, na sentença em questão, ao reconhecer a usucapião, na verdade, reconheceu a posse da embargante, que era pressuposto da primeira. Está plenamente demonstrada, portanto, a condição de possuidora do bem.
A sentença de usucapião abrangeu apenas o endereço do local onde funcionava a panificadora ré na ação de despejo. Entretanto, o outro endereço da mesma avenida constante na ação de despejo é o lugar da casa da embargante e de sua família que ali já residem há anos. Portanto, tem plenas condições de provar a sua posse sobre o referido logradouro também, pois se trata do local onde tem a sua moradia.
A embargante, também, provou a sua condição de terceiro na ação de despejo, pois esta foi movida contra a empresa panificadora. A embargante, I. N. C. nunca foi a representante legal ou, até mesmo, sócia da empresa acionada.
Sabemos que com o advento do novo Código Civil o representante legal das empresas passou a ser o Administrador, o qual substitui a antiga figura do Sócio-Gerente. Entretanto, a embargante não é e nunca foi administradora ou sócia da empresa panificadora ré na ação de despejo.
Como se vislumbra no contrato de locação, que ampara a ação de despejo, o pacto foi firmado entre a embargada e a empresa panificadora. I. N. C. não figurou como parte no contrato e nem sequer tem parentesco ou é sucessora dos proprietários da empresa que firmou o contrato de locação. Portanto, é pessoa estranha à lide de despejo e perfeitamente caracterizada como terceira, parte legítima para propor os embargos. Ou seja, se é pessoa que não foi citada e nem participou da ação original de despejo, não pode ser prejudicada pela ordem de despejo dada contra a panificadora da qual não é, sequer, sócia.
Na ação de embargos, a advogada Maria Corrêa argumenta que são perfeitamente admissíveis embargos de terceiro contra execução de despejo. Para provar sua argumentação, colaciona arestos, inclusive, do Superior Tribunal de Justiça:
(...) 2. Em regra, não cabem embargos de terceiro contra mandado de despejo, situação que se modifica quando o sublocatário os maneja na defesa da posse do imóvel por não ter participado da respectiva ação. (...) (STJ - REsp 551731 / RJ, RECURSO ESPECIAL 2003/0087475-3, Relator(a) Ministro PAULO GALLOTTI, Órgão Julgador T6 - SEXTA TURMA Data do Julgamento 23/11/2004 Data da Publicação/Fonte DJ 05/02/2007 p. 405)
Ao ensejo do julgamento do Resp 16.975-SP (DJ 14/3/94) pronunciou-se novamente a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça no mesmo sentido, conforme ementa do acórdão relatado pelo Ministro Barros Monteiro:
EMBARGOS DE TERCEIRO EM AÇÃO DE DESPEJO. OFERECIMENTO APOS O TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA PROFERIDA NO PROCESSO DE CONHECIMENTO. ADMISSIBILIDADE. A COISA JULGADA É FENÔMENO QUE SÓ DIZ RESPEITO AOS SUJEITOS DO PROCESSO, PELO QUE NÃO CONSTITUI ELA EMPECILHO A DEFESA DO TERCEIRO, ATRAVÉS DESSE 'REMEDIUM IURIS', CONTRA OS EFEITOS DA SENTENÇA. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. (REsp 16975 / SP, RECURSO ESPECIAL 1991/0024475-9 Relator(a) Ministro BARROS MONTEIRO (1089) Órgão Julgador T4 - QUARTA TURMA Data do Julgamento 14/12/1993 Data da Publicação/Fonte DJ 14/03/1994 p. 4526, RSTJ vol. 59 p. 239)
A advogada citou, também, que o Supremo Tribunal Federal já chegou a se manifestar em caso semelhante:
EMBARGOS DE TERCEIRO EM EXECUÇÃO DE AÇÃO DE DESPEJO. SUA ADMISSIBILIDADE, NO CASO VERTENTE. TENDÊNCIAS DA JURISPRUDÊNCIA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO, A QUE SE NEGOU PROVIMENTO. (STF - RECURSO EXTRAORDINÁRIO: RE 62196 SP, Relator(a): ADALICIO NOGUEIRA, Julgamento: 31/12/1969, Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA, Publicação: DJ 01-06-1967)
No voto proferido pelo Ministro relator do STF relativo à ementa acima ficou consignado:
“(...) A adequação ou cabimento dos embargos de terceiro justifica-se no caso, porque os embargantes não ostentavam mais a condição de locatários, mas a de ocupantes (...)” (grifo meu)
Justamente, é esta a condição da embargante: é possuidora e ocupante do imóvel objeto da ação de despejo por tempo suficiente a lhe ser reconhecido mediante sentença o direito à usucapião, conforme alegou na petição inicial daquela ação de usucapião cuja sentença lhe foi favorável.
A advogada Maria Corrêa argumentou que a interposição dos embargos de terceiros deveriam obrigatoriamente suspender a execução do mandado de despejo. Tal conclusão deriva da própria letra da lei. Aduziu a advogada que a necessidade de suspensão da execução do despejo decorre do próprio Código de Processo Civil: Art. 1.052. Quando os embargos versarem sobre todos os bens, determinará o juiz a suspensão do curso do processo principal; versando sobre alguns deles, prosseguirá o processo principal somente quanto aos bens não embargados.”
A advogada citou acórdãos que não deixam margem de dúvida sobre a necessidade de imediata suspensão da execução do despejo:
“EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE DESPEJO - ORDEM DE DESOCUPAÇÃO - TERCEIRO OCUPANTE DO IMÓVEL - EMBARGOS DE TERCEIRO - LEGITIMIDADE ATIVA - SUSPENSÃO DO PROCESSO PRINCIPAL. A teor do disposto no artigo 1.046 do CPC, para a propositura dos embargos de terceiro é preciso que o embargante comprove não ser parte no processo, bem como a turbação ou esbulho sofrido, em razão de ato de apreensão judicial. Comprovada a presença dos requisitos estabelecidos pelo artigo 1.046 do CPC, o simples manejo dos embargos de terceiro, impõe a suspensão do curso do processo principal, por força do artigo 1.052 do mandamento adjetivo.” (TJMG - AGRAVO N° 1.0024.04.371345-2/002 - COMARCA DE BELO HORIZONTE - AGRAVANTE(S): MIGUEL FURTADO NETO - AGRAVADO(A)(S): DANIEL ALOISIO ROCHA DE CASTRO - RELATOR: EXMO. SR. DES. NILO LACERDA)
"EMBARGOS DE TERCEIRO - SUSPENSÃO DO PROCESSO PRINCIPAL - ARTIGO 1.052 DO CPC - ABRANGÊNCIA - Interpostos embargos de terceiro, o Juiz deve ordenar a suspensão do processo apontado como principal, suspensão esta que atinge todos os atos ali determinados, inclusive o cumprimento de liminar, se já deferida" (TAMG - 1ª Câmara Cível, AG. 328.536-9, Rel. Juiz Silas Vieira, j. 8.5.2001).
Analisando os argumentos expedidos na ação de embargos de terceiro, a magistrada lançou a seguinte decisão, evitando a execução do mandado de despejo:
“(...)ANTE O EXPOSTO, DEFERE-SE a liminar de manutenção de posse da embargante com relação ao imóvel descrito na inicial, devendo ser expedido o respectivo mandado. Suspende-se a execução da Ação de Despejo com relação ao imóvel em questão, devendo ser recolhido o mandado de despejo compulsório. Cite-se a parte embargada, no endereço informado à fl. 02, para, querendo, contestar o pedido, no prazo de 10 (dez) dias, na forma da lei, sob pena de serem presumidos verdadeiros os fatos contidos na inicial. Intime-se. Cumpra-se. Belém, 07 de outubro de 2010. TERESINHA NUNES MOURA, Juíza de Direito titular da 3ª Vara Cível da Capital.”