Em processo criminal, para que
haja fundamento da condenação de uma pessoa é necessária certeza razoável da
culpa do réu por parte do juiz.
Não havendo tal certeza, havendo
dúvida por parte do magistrado, o resultado deve ser a absolvição, pois em Direito
Penal prevalece a máxima de que “in dubio
pro reo”.
In dubio pro reo é uma expressão latina que significa literalmente
na dúvida, a favor do réu. Ela expressa o princípio jurídico da presunção da
inocência, que diz que em casos de dúvidas (por exemplo, insuficiência de
provas) será favorecido o réu.
Em inúmeros casos, no dia a dia forense,
a prova fundamental em que se apoiam juízes para condenação do acusado tem sido
o reconhecimento pessoal do réu pela vítima ou por testemunhas.
A seguir, iremos expor trecho de razões
de apelação por nós apresentadas no Tribunal de Justiça do Estado do Pará, na
qual houve condenação com base em suposto reconhecimento pessoal do acusado, a
fim de exemplificar como pode ser frágil este meio de prova se não houver bastante
ponderação do magistrado ao apreciá-lo:
“II –
a) DA INSUFICIÊNCIA DE PROVAS DA AUTORIA.
Vejamos um trecho da sentença onde o
magistrado fundamentou a autoria:
“Atente-se que é ela (a vítima) incisiva no
reconhecimento de F. Portanto, as declarações da supramencionada vítima, nesta
Justiça e na polícia, são coerentes, hábeis a um juízo de convicção da
participação ativa de F. na ação ilícita em que foi vítima juntamente com seu namorado...”
Entretanto, com a devida vênia, o que é
considerado reconhecimento incisivo pelo Magistrado, na verdade, não possui a
minha consistência para que se profira edito condenatório.
A circunstância a que foi atribuída força
probatória de reconhecimento resumiu-se a uma olhada de relance lançada pela
vítima nos corredores do fórum criminal de Belém.
No registro em vídeo da audiência, aos 12:51
min., a vítima, B. S. L., afirma que viu o réu no corredor do fórum, mas logo
virou a cara. Ou seja, como dito, olhou de relance e mesmo assim diz ter
reconhecido um dos assaltantes. Não sabemos sequer se foi o réu, realmente, que
a vítima avistou nos corredores do fórum criminal.
Em razão desta circunstância, o Magistrado
que presidia a audiência e, depois, proferiu a sentença, dispensou a
formalidade de realização de um reconhecimento de pessoa durante o ato de instrução
criminal.
Aos 12:25 min., do depoimento de B. S. L., o
Meritíssimo Juiz decide que não iria fazer um auto de reconhecimento pois a
vítima tinha visto o réu nos corredores do fórum e, portanto, estava
prejudicado o auto de reconhecimento.
A primeira pergunta a ser feita é a
seguinte: que culpa pode ser atribuída ao réu se no fórum criminal de Belém não
se garante a separação em salas distintas das vítimas e dos acusados? O réu é
culpado se no fórum criminal de Belém não se tem estrutura para cumprir o art.
201, § 4º, do CPP, o qual dispõe: “Antes do início da audiência e durante a sua
realização, será reservado espaço separado para o ofendido”? O réu foi intimado
para a audiência e compareceu, permanecendo nos corredores do fórum. Se não
reservaram espaço separado para a vítima, não poderia ter sido prejudicado, em
razão disso, pela supressão do ato de reconhecimento de acordo com as
formalidades do art. 226 do CPP, no qual deveria ter sido, no mínimo, colocado
ao lado de outras pessoas que com ele tivessem qualquer semelhança.
O réu em momento algum adentrou na sala de
audiências, não ficou frente a frente com as vítimas e com as testemunhas
durante o ato processual, a vítima revela que não havia procedido reconhecimento
nenhum na fase do inquérito policial, não se sabe se a pessoa que ela avistou
nos corredores do fórum era, realmente, o réu e foi suprimido o seu direito a
um ato de reconhecimento com as formalidades legais.
O ato poderia ter sido procedido, pois, ao
responder as perguntas do Promotor de Justiça, a vítima afirmou, aos 6:27 min.,
do vídeo de seu depoimento, que tinha condições de reconhecer o réu pelo vidro
de reconhecimento da sala de audiências sem que o réu a visse, porém, mesmo
assim, não foi procedido o ato de reconhecimento.
Para se ter uma ideia de quão frágil é a
circunstância em que se apoiou o Magistrado para condenar o réu, vejamos o
depoimento da vítima. Aos 6:56 min., do vídeo de seu depoimento, disse que,
pelo pouco que o viu no ambiente do fórum criminal, o reconheceu, dizendo, em seguida
que era magro, que não era muito alto e afirmou que o réu era: “NEGRO, PARDO,
MORENO OU MORENO ESCURO”, para finalmente dizer que o réu era pardo. Basta
ouvir o depoimento aos 6:56 min.
Não bastasse a indecisão da vítima sobre as
características raciais do réu, a Defesa vem a afirmar a Vossas Excelências que
o réu é mameluco, um indivíduo que possui ascendência indígena e branca, um típico
caboclo da Amazônia. Basta ver a identidade de F. fl. 39, a qual revela uma
pessoa com traços indígenas, com os olhos puxados característicos dos caboclos
amazônidas, nada tendo a ver com as características dos descendentes da raça
negra que a vítima descreveu.
Não desconhecemos lições recentes do Supremo
Tribunal Federal no seguinte sentido: “O reconhecimento firme e seguro feito
pela vítima, em juízo, dispensa as formalidades do artigo 226 do CPP” (STF -
ARE: 791170 DF , Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 28/04/2014,
Data de Publicação: DJe-082 DIVULG 30/04/2014 PUBLIC 02/05/2014). Porém,
observemos que o Senhor Ministro está se referindo ao reconhecimento feito EM
JUÍZO, sob o crivo do contraditório, na presença do defensor do réu, que ocorre
quando o réu está presente na sala de audiências, ou no mínimo quando ele é avistado
através do vidro especial de reconhecimento da sala de audiências, ainda que
não se coloquem pessoas semelhantes ao seu lado. Nada disso se confunde com a
vítima ter dito que viu o réu de relance nos corredores do fórum criminal e
logo virou a cara. Como já dito, nem se sabe se foi mesmo o réu que a vítima
avistou nos corredores do fórum criminal. Não é possível que se vá admitir que
tenha sido este incidente um ato processual. Admitir isto fere de morte o
princípio do contraditório e da ampla defesa.
Vejamos a doutrina de Gustavo Henrique
Barbosa Campos, in “O Contraditório e a Ampla Defesa no Processo Penal”,
disponível em < http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=12318>,
acesso em 13/04/2015:
“A exigência de contraditório e ampla defesa
na formação e produção das provas pode assim ser desdobrada: proibição de fatos
que não tenham sido previamente introduzidos pelo juiz no processo e submetidos
a debate pelas partes; proibição de utilizar provas formadas fora do processo
ou de qualquer modo colhidas na ausência
das partes; a obrigação do juiz, quando determinar a produção de provas
ex officio, de submetê-las ao contraditório das partes, as quais devem participar
de sua produção e poder oferecer a contraprova.
Ainda, quanto à prova, diz Grinover: “tanto será viciada a prova que for colhida
sem a presença do juiz, como o será a prova colhida pelo juiz, sem a presença
das partes; a concomitante presença de ambos- juiz e partes- na produção das
provas é essencial à sua validade.” [GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES,
Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo
penal. 10. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008,
pag.145,146]”
Evidente que o suposto encontro da vítima
com o réu nos corredores do fórum, caso tenha havido, terá sido ocorrência
acontecida sem a presença do juiz e do defensor do réu, o que vicia a ocorrência
e impede que seja usada como prova apta para condenar um acusado.
Entendimento em sentido contrário fere de
morte o art. 5º, LX, da Constituição Federal, in verbis: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes”. De forma que fica, desde já, prequestionada a
violação do referido dispositivo constitucional para os fins de Recurso Extraordinário
se for necessário, requerendo que o tribunal expressamente se manifeste
sobre a violação.
Da mesma forma é determinado no Código de
Processo Penal: “Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre
apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo
fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na
investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”.
Mais uma vez se vê que prova somente é aquela produzida em contraditório
judicial e a ocorrência em que se fundamentou o magistrado para condenar o réu
(o suposto encontro da vítima com o réu nos corredores do fórum criminal) não
pode ser assim considerada. De forma que, se mantida a condenação com base
nesse fundamento, entendemos violado o art. 155, caput, do CPP, ficando desde
já prequestionada a violação da norma federal para fins de Recurso Especial se
for necessário, requerendo que o tribunal expressamente se manifeste sobre a
violação.
Deve ser aduzido, ainda, nesse tema do
reconhecimento, que a vítima, E. B. Q., não fez também nenhum reconhecimento
durante a audiência de instrução e julgamento, não se referiu a ter reconhecido
o réu nos corredores do fórum, bem como os policiais que serviram como
testemunhas não entraram em contato com o réu durante o ato de instrução
processual. Portanto, reconhecimento pessoal do réu não houve durante a
audiência de instrução deste processo criminal.”
Verificamos, portanto, que não só
o juiz deve agir com ponderação ao apreciar a prova resultante de um
reconhecimento pessoal, como deve também seguir os ritos processuais previstos
em lei a fim de assegurar o direito ao devido processo legal e ao contraditório
ao acusado. Jamais se pode admitir que um reconhecimento procedido fora da sala
de audiências, fora do processo e de um ato processual, possa servir como prova
absoluta a fundamentar uma condenação.
Aguardamos o julgamento desta
apelação com a consequente absolvição do acusado.
* Patrícia Leão é advogada
atuante na Comarca de Belém do Pará – Tel. (91)981741220 – e-mail:
paticialeao2010@yahoo.com.br
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