sábado, 17 de fevereiro de 2018

O RECONHECIMENTO PESSOAL DO ACUSADO (SEM OBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCEDIMENTO LEGAL) NÃO PODE SER CONSIDERADO PROVA ABSOLUTA NO PROCESSO PENAL



Em processo criminal, para que haja fundamento da condenação de uma pessoa é necessária certeza razoável da culpa do réu por parte do juiz.
Não havendo tal certeza, havendo dúvida por parte do magistrado, o resultado deve ser a absolvição, pois em Direito Penal prevalece a máxima de que “in dubio pro reo”.
In dubio pro reo é uma expressão latina que significa literalmente na dúvida, a favor do réu. Ela expressa o princípio jurídico da presunção da inocência, que diz que em casos de dúvidas (por exemplo, insuficiência de provas) será favorecido o réu.
Em inúmeros casos, no dia a dia forense, a prova fundamental em que se apoiam juízes para condenação do acusado tem sido o reconhecimento pessoal do réu pela vítima ou por testemunhas.
A seguir, iremos expor trecho de razões de apelação por nós apresentadas no Tribunal de Justiça do Estado do Pará, na qual houve condenação com base em suposto reconhecimento pessoal do acusado, a fim de exemplificar como pode ser frágil este meio de prova se não houver bastante ponderação do magistrado ao apreciá-lo:

II – a) DA INSUFICIÊNCIA DE PROVAS DA AUTORIA.
Vejamos um trecho da sentença onde o magistrado fundamentou a autoria:
“Atente-se que é ela (a vítima) incisiva no reconhecimento de F. Portanto, as declarações da supramencionada vítima, nesta Justiça e na polícia, são coerentes, hábeis a um juízo de convicção da participação ativa de F. na ação ilícita em que foi vítima juntamente com seu namorado...”
Entretanto, com a devida vênia, o que é considerado reconhecimento incisivo pelo Magistrado, na verdade, não possui a minha consistência para que se profira edito condenatório.
A circunstância a que foi atribuída força probatória de reconhecimento resumiu-se a uma olhada de relance lançada pela vítima nos corredores do fórum criminal de Belém.
No registro em vídeo da audiência, aos 12:51 min., a vítima, B. S. L., afirma que viu o réu no corredor do fórum, mas logo virou a cara. Ou seja, como dito, olhou de relance e mesmo assim diz ter reconhecido um dos assaltantes. Não sabemos sequer se foi o réu, realmente, que a vítima avistou nos corredores do fórum criminal.
Em razão desta circunstância, o Magistrado que presidia a audiência e, depois, proferiu a sentença, dispensou a formalidade de realização de um reconhecimento de pessoa durante o ato de instrução criminal.
Aos 12:25 min., do depoimento de B. S. L., o Meritíssimo Juiz decide que não iria fazer um auto de reconhecimento pois a vítima tinha visto o réu nos corredores do fórum e, portanto, estava prejudicado o auto de reconhecimento.
A primeira pergunta a ser feita é a seguinte: que culpa pode ser atribuída ao réu se no fórum criminal de Belém não se garante a separação em salas distintas das vítimas e dos acusados? O réu é culpado se no fórum criminal de Belém não se tem estrutura para cumprir o art. 201, § 4º, do CPP, o qual dispõe: “Antes do início da audiência e durante a sua realização, será reservado espaço separado para o ofendido”? O réu foi intimado para a audiência e compareceu, permanecendo nos corredores do fórum. Se não reservaram espaço separado para a vítima, não poderia ter sido prejudicado, em razão disso, pela supressão do ato de reconhecimento de acordo com as formalidades do art. 226 do CPP, no qual deveria ter sido, no mínimo, colocado ao lado de outras pessoas que com ele tivessem qualquer semelhança.
O réu em momento algum adentrou na sala de audiências, não ficou frente a frente com as vítimas e com as testemunhas durante o ato processual, a vítima revela que não havia procedido reconhecimento nenhum na fase do inquérito policial, não se sabe se a pessoa que ela avistou nos corredores do fórum era, realmente, o réu e foi suprimido o seu direito a um ato de reconhecimento com as formalidades legais.
O ato poderia ter sido procedido, pois, ao responder as perguntas do Promotor de Justiça, a vítima afirmou, aos 6:27 min., do vídeo de seu depoimento, que tinha condições de reconhecer o réu pelo vidro de reconhecimento da sala de audiências sem que o réu a visse, porém, mesmo assim, não foi procedido o ato de reconhecimento.
Para se ter uma ideia de quão frágil é a circunstância em que se apoiou o Magistrado para condenar o réu, vejamos o depoimento da vítima. Aos 6:56 min., do vídeo de seu depoimento, disse que, pelo pouco que o viu no ambiente do fórum criminal, o reconheceu, dizendo, em seguida que era magro, que não era muito alto e afirmou que o réu era: “NEGRO, PARDO, MORENO OU MORENO ESCURO”, para finalmente dizer que o réu era pardo. Basta ouvir o depoimento aos 6:56 min.
Não bastasse a indecisão da vítima sobre as características raciais do réu, a Defesa vem a afirmar a Vossas Excelências que o réu é mameluco, um indivíduo que possui ascendência indígena e branca, um típico caboclo da Amazônia. Basta ver a identidade de F. fl. 39, a qual revela uma pessoa com traços indígenas, com os olhos puxados característicos dos caboclos amazônidas, nada tendo a ver com as características dos descendentes da raça negra que a vítima descreveu.
Não desconhecemos lições recentes do Supremo Tribunal Federal no seguinte sentido: “O reconhecimento firme e seguro feito pela vítima, em juízo, dispensa as formalidades do artigo 226 do CPP” (STF - ARE: 791170 DF , Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 28/04/2014, Data de Publicação: DJe-082 DIVULG 30/04/2014 PUBLIC 02/05/2014). Porém, observemos que o Senhor Ministro está se referindo ao reconhecimento feito EM JUÍZO, sob o crivo do contraditório, na presença do defensor do réu, que ocorre quando o réu está presente na sala de audiências, ou no mínimo quando ele é avistado através do vidro especial de reconhecimento da sala de audiências, ainda que não se coloquem pessoas semelhantes ao seu lado. Nada disso se confunde com a vítima ter dito que viu o réu de relance nos corredores do fórum criminal e logo virou a cara. Como já dito, nem se sabe se foi mesmo o réu que a vítima avistou nos corredores do fórum criminal. Não é possível que se vá admitir que tenha sido este incidente um ato processual. Admitir isto fere de morte o princípio do contraditório e da ampla defesa.
Vejamos a doutrina de Gustavo Henrique Barbosa Campos, in “O Contraditório e a Ampla Defesa no Processo Penal”, disponível em < http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=12318>, acesso em 13/04/2015:   
“A exigência de contraditório e ampla defesa na formação e produção das provas pode assim ser desdobrada: proibição de fatos que não tenham sido previamente introduzidos pelo juiz no processo e submetidos a debate pelas partes; proibição de utilizar provas formadas fora do processo ou de qualquer modo colhidas na ausência  das partes; a obrigação do juiz, quando determinar a produção de provas ex officio, de submetê-las ao contraditório das partes, as quais devem participar de sua produção e poder oferecer a contraprova.
Ainda, quanto à prova, diz Grinover: “tanto será viciada a prova que for colhida sem a presença do juiz, como o será a prova colhida pelo juiz, sem a presença das partes; a concomitante presença de ambos- juiz e partes- na produção das provas é essencial à sua validade.” [GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 10. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pag.145,146]”
Evidente que o suposto encontro da vítima com o réu nos corredores do fórum, caso tenha havido, terá sido ocorrência acontecida sem a presença do juiz e do defensor do réu, o que vicia a ocorrência e impede que seja usada como prova apta para condenar um acusado.
Entendimento em sentido contrário fere de morte o art. 5º, LX, da Constituição Federal, in verbis: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. De forma que fica, desde já, prequestionada a violação do referido dispositivo constitucional para os fins de Recurso Extraordinário se for necessário, requerendo que o tribunal expressamente se manifeste sobre a violação.
Da mesma forma é determinado no Código de Processo Penal: “Art. 155.  O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”. Mais uma vez se vê que prova somente é aquela produzida em contraditório judicial e a ocorrência em que se fundamentou o magistrado para condenar o réu (o suposto encontro da vítima com o réu nos corredores do fórum criminal) não pode ser assim considerada. De forma que, se mantida a condenação com base nesse fundamento, entendemos violado o art. 155, caput, do CPP, ficando desde já prequestionada a violação da norma federal para fins de Recurso Especial se for necessário, requerendo que o tribunal expressamente se manifeste sobre a violação.
Deve ser aduzido, ainda, nesse tema do reconhecimento, que a vítima, E. B. Q., não fez também nenhum reconhecimento durante a audiência de instrução e julgamento, não se referiu a ter reconhecido o réu nos corredores do fórum, bem como os policiais que serviram como testemunhas não entraram em contato com o réu durante o ato de instrução processual. Portanto, reconhecimento pessoal do réu não houve durante a audiência de instrução deste processo criminal.”

Verificamos, portanto, que não só o juiz deve agir com ponderação ao apreciar a prova resultante de um reconhecimento pessoal, como deve também seguir os ritos processuais previstos em lei a fim de assegurar o direito ao devido processo legal e ao contraditório ao acusado. Jamais se pode admitir que um reconhecimento procedido fora da sala de audiências, fora do processo e de um ato processual, possa servir como prova absoluta a fundamentar uma condenação.  
Aguardamos o julgamento desta apelação com a consequente absolvição do acusado.

* Patrícia Leão é advogada atuante na Comarca de Belém do Pará – Tel. (91)981741220 – e-mail: paticialeao2010@yahoo.com.br


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